O mundo não está para brincadeiras nos primeiros dias do Porto/Post/Doc

Novo festival de “cinema do real” mostra uma selecção competitiva que não recua perante a dureza da realidade.

Fotogaleria
Our Terrible Country
Fotogaleria
Our Terrible Country
Fotogaleria
Atlas
Fotogaleria
Atlas
Fotogaleria
Storm Children
Fotogaleria
Storm Children
Fotogaleria
9999
Fotogaleria
9999

“As nossas histórias são reais”, afirma o Porto/Post/Doc (P/P/D) no “mote” que invoca a sua aposta na actual corrente arrojada do cinema documental que se convencionou designar “cinemas do real”. E a realidade, como demonstram as escolhas de programação feitas pelo novo festival de cinema documental do Porto que arranca na sexta-feira a tempo inteiro, não é nada meiga nem complacente. O mundo, parece-nos dizer, não está para brincadeiras.

Não há melhor exemplo disso do que Our Terrible Country, pungente olhar sobre a Síria em desintegração que acompanha o escritor Yassin al-Haj Saleh, que esteve 16 anos prisioneiro do regime de Bashar al-Assad, e o fotógrafo Ziad Homsi, quase 30 anos mais jovem, numa espécie de road movie simultaneamente geográfico e mental. Assinado a meias por Homsi e Muhammad Ali Atassi, Our Terrible Country, vencedor do FIDMarseille 2014 mostrado pelo Doclisboa na secção Investigações e aqui no concurso principal, é ao mesmo tempo um filme do seu momento, urgente e actual, e uma meditação intemporal sobre a própria identidade, sobre o que significa ser cidadão de um país.

É talvez por aí que se percebe a discrepância entre as obras portuguesas (três) e as obras estrangeiras (nove) escolhidas para a selecção competitiva do primeiro P/P/D. Os títulos portugueses são As Cidades e as Trocas de Luísa Homem e Pedro Pinho (terça 9, 18h, e quinta 11, 15h), Volta à Terra de João Pedro Plácido (domingo 7, 15h e sábado 13, 18h), e João Bénard da Costa de Manuel Mozos (segunda 8, 21h30, e quinta 11, 18h). Todos olham para quotidianos banais (Cabo Verde, a aldeia da Uz, a vida do crítico e programador João Bénard da Costa) de modo curioso, empático, até inspirado. Mas fazem-no de um modo essencialmente contemplativo e observacional.

Aquilo que vem lá de fora, por oposição, é poderosamente confrontacional ao ponto de ser, por vezes, insustentável. Já o percebíamos em Our Terrible Country (que passa domingo 7, 21h30, e quarta 10, 18h), mas outros filmes mostram-no de modo ainda mais duro. Em Atlas (sexta 5, 21h30 e sexta 12, 18h), o fotógrafo francês Antoine d'Agata, ligado à agência Magnum, recolhe imagens, vozes e histórias de prostitutas de todo o mundo. O seu olhar é simultaneamente neutro e impiedoso, sem fazer julgamentos morais, mas procurando a beleza no inferno diário de mulheres num círculo vicioso entre a droga e o sexo. Dilacerante exercício pictural que prolonga o trabalho fotográfico de D'Agata, Atlas coloca o modo como estas figuras são filmadas no centro da sua abordagem: é o tempo que cada plano dura que o diferencia de um simples objecto voyeurista.

É também a duração que está no centro do dispositivo de Storm Children, Book One (sábado 6 às 15h e sexta 12 às 21h30), onde Lav Diaz acompanha o quotidiano de alguns miúdos da cidade costeira de Tacloban City depois da passagem do tufão Haiyun. Formalmente, Storm Children não difere dos anteriores filmes do cineasta filipino (Norte – The End of History ou o Leopardo de Ouro de Locarno From What Is Before), mas aplica esse dispositivo ao real que o rodeia. São longos planos fixos a preto e branco que orientam o olhar do espectador em direcção ao essencial; a ausência de diálogos e a duração do plano revelam aos poucos, sem pressas, que estes miúdos de rua que parecem estar a usar a cidade como terreno de brincadeiras perderam família e casa na destruição. Diaz manifesta uma generosidade e uma abertura ao real que evita a compaixão gratuita.

Algo que a belga Ellen Vermeulen não consegue evitar em 9999 (sábado 6, 21h30 e sexta 12, 15h), primo afastado do Pára-me de Repente o Pensamento de Jorge Pelicano. O título refere-se ao número máximo de dias que a lei belga permite manter na prisão doentes mentais condenados pela prática de crimes; na prática, podem ficar detidos indefinidamente, e Vermeulen dá a ver o quotidiano de cinco homens nessa situação na insalubre prisão de Merksplas, perto de Antuérpia. 9999 assume abertamente a sua vocação de filme activista, procurando chamar a atenção para uma injustiça, mas no processo mostra-se mais interessado nestes homens como símbolos ou como vítimas de uma injustiça do que como indivíduos com histórias pessoais

Sugerir correcção
Comentar