Morreu Chantal Akerman, cineasta moderna

Era uma das grandes cineastas contemporâneas, uma intérprete singular, e frequentemente sublime, de uma ideia de modernidade cinematográfica.

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Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080, Bruxelles, filme que realizou aos 25 anos, na década de 70 dr
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O sublime Je Tu Il Elle dr
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Hotel Monterey dr
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D'Est, no princípio dos anos 90, permanece como um dos filmes essenciais sobre a paisagem do antigo Bloco de Leste no período pós-soviético. dr
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Lá-Bas dr
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No Home Movie que foi apresentado no Festival de Cinema de Locarno dr
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No Home Movie que foi apresentado no último Festival de Cinema de Locarno dr
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A Cativa, belíssima "reinvenção" do Vertigo de Hitchcock à luz de Proust, ou vice-versa. dr

Os diários franceses Libération e Le Monde, assim como a televisão pública belga, RTBF, noticiam a morte de Chantal Akerman, aos 65 anos. O Le Monde é o único a avançar uma causa, garantindo que a realizadora se suicidou na segunda-feira.

A morte de Akerman foi confirmada à AFP ao início da tarde pelo seu produtor, Patrick Quinet, que se escusou a falar sobre as causas. A agência de notícias francesa acrescenta, no entanto, que sofria de "distúrbios maníaco-depressivos".

"Era uma realizadora enorme que, pela sua singularidade, revolucionou alguns segmentos do cinema internacional", sublinhou Quinet.

Chantal Akerman era, de facto, uma das grandes cineastas contemporâneas, uma intérprete singular, e frequentemente sublime, de uma ideia de modernidade cinematográfica. Era "filha" do casamento entre a Nouvelle Vague – como disse centos de vezes, a vocação despertou-se-lhe, tinha ela 15 anos, quando viu o Pierrot le Fou de Godard – e a vanguarda americana, os Warhols, Mekas, Brakhages e etc., que conheceu de perto quando, ainda novinha, no princípio dos anos 1970, foi apanhar a cauda da então fervilhante cena artística nova-iorquina.

O seu cinema nasce desta vontade de liberdade e experimentação constantes, mas sempre enformadas por uma concepção rigorosa, dura e por vezes muito austera, da mise en scène enquanto exercício estrutural – como é o caso de um dos seus filmes mais célebres, feito ainda nos anos 70 (tinha Chantal 25 anos, foi um exemplo de precocidade), Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080, Bruxelles, assombroso exercício de repetição de uma rotina progressivamente degradada e corroída.

Muito por causa desse filme – que evocava a condição "cativa" de uma mulher da classe média belga –, colou-se-lhe o rótulo de cineasta "feminista". E se Chantal recusava os rótulos e a "ghettização" (não deixava, por exemplo, que os seus filmes passassem em festivais definidos por algum tipo de orientação sexual), é evidente que as figuras femininas dominam a sua obra, entre "duplos" dela própria, por vezes interpretados por ela mesma, assim confundindo as fronteiras da auto-representação (caso do sublime Je Tu Il Elle, que é mesmo um ousadíssimo trabalho de auto-figuração, só comparável a coisas que César Monteiro faria anos mais tarde), e evocação de figuras maternais – a sua mãe, a quem ela dedicou o último filme que deixou, No Home Movie, estreado no Festival de Locarno deste ano, era uma sobrevivente de Auschwitz, e a sombra desse passado familiar é uma inquietação que percorre a angústia de vários dos seus filmes.

Chantal, cineasta extremamente profícua (embora um pouco menos nos últimos anos), fez um pouco de tudo. Dos ensaios experimentais (como Hotel Monterey) aos documentários: D'Est, no princípio dos anos 90, permanece como um dos filmes essenciais sobre a paisagem do antigo Bloco de Leste no período pós-soviético.

Foi ao encontro do mundo, filmou Israel (em Lá-Bas) e voltou várias vezes aos Estados Unidos, motivada pela proximidade afectiva e cultural com a América (Sud, também nos anos 90, é uma tentativa de mergulhar na complexidade sociológica do sul dos Estados Unidos).

Mas também foi uma cineasta da ficção, em inúmeros filmes que prolongavam o diálogo entre modernidade e as formas do classicismo – como Une Chambre à New York, sob a égide das comédias românticas da Hollywood antiga, ou A Cativa, belíssima "reinvenção" do Vertigo de Hitchcock à luz de Proust, ou vice-versa.

Em declaração ao Libération, a realizadora francesa Claire Denis (Uma Mulher em África)  que privou de perto com Chantal desde que a conheceu nos anos 70, no Festival de Roterdão – classifica-a como alguém que "era impossível de tomar como modelo, porque era única; era tudo, excepto alguém que se pudesse prender, ou definir”.

“Eu gostava de me pegar com ela, quando nos encontrávamos na selecção Un Certain Regard em Cannes, à volta dos filmes [do realizador israelita] Avi Mograbi; ela defendia uma certa maneira de falar de Israel. Havia algo de violento e de divertido no facto de ela se encolerizar assim”, acrescenta Claire Denis.

Em 2012, DocLisboa e a Cinemateca apresentaram uma retrospectiva integral da sua obra, excelente ocasião para apreender a densidade maravilhosa da autêntica constelação que é a sua filmografia.

Cíntia Gil, da direcção do DocLisboa, vê em cada filme de Chantal Akerman “a entrada para um mapa de afectos, memórias, experimentos de quem vive o cinema como se o reinventasse”. Num testemunho prestado ao PÚBLICO por email, acrescenta: “Se Chantal mudou a história do cinema, fê-lo porque a olhou de frente e a virou do avesso como quem descobre o segredo de um jogo. De Buster Keaton a Godard ou Michael Snow, estavam todos ali, num mundo que era seu, singular. Feito de uma profunda intuição da memória, da territorialidade, do quotidiano e do esforço de encontrar uma pertença. Um mundo à sua medida, onde coube tanto a Europa e a sua história como os amores e as descobertas dele. Chantal filmou o amor como ninguém em Je,Tu, Il, Elle”.<_o3a_p>

E Cíntia Gil recorda a passagem de Chantal Akerman por Lisboa em 2012: “Quando esteve connosco e falou de como colocava a câmara, numa geometria tão particular, disse que se enquadrasse de cima, diminuía as pessoas; se as enquadrasse de baixo, faria ídolos. Não queria nem um nem outro. O seu último filme, No Home Movie, é a marca mais comovente desta coragem: voltar à sua casa, da sua mãe, âncora fundamental do seu cinema, e aprender a filmar de novo, só para poder estar à altura de a perder”.<_o3a_p>

 A edição 2015 do Doc (22 Out.-1 Nov) vai exibir, fora de concurso, No Home Movie (2015), e também, na secção Riscos, o documentário e primeira-obra que a belga Marianne Lambert lhe dedicou, I Don’t Belong Anywhere – Le Cinéma de Chantal Akerman.

Ainda havia muito a esperar dela; é uma grande e inesperada perda. 

Com Sérgio C. Andrade

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