Haverá salvação?

A saga Melrose chega ao fim com um romance íntimo sobre a solidão de um homem no momento em que se sente finalmente livre. Um livro tão negro e irónico, tão inteligente e certeiro quanto os quatro anteriores

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Na literatura inglesa, há um precedente óbvio para a mordacidade, a cultura e a elegância de Edward St. Aubyn: Evelyn Waugh

Pode alguém escapar à neurose familiar? A pergunta atravessa os cinco romances que compõem a saga Melrose, o ambicioso e notável trabalho literário do escritor britânico Edward St. Aubyn (n. 1960), que agora se conclui em Portugal com a publicação do quinto e derradeiro volume, Por Fim. Escrito entre 1992 e 2012, este quinteto de romances foi um projecto de salvação pessoal do próprio autor, vítima de uma infância marcada pela crueldade familiar e por uma pretensão social a que quase tudo foi sacrificado. Para tentar libertar-se desse passado, Edward St. Aubyn criou Patrick Melrose, filho de um médico falido chamado Dave — um homem sádico, violador e pedófilo, que abusa do próprio filho desde os cinco anos de idade. A mulher, Eleanor, descendente de uma família milionária franco-americana, é uma figura ausente das suas responsabilidades maternas; fragilizada por um marido que a humilha continuamente, escolhe não ver o óbvio para sobreviver e acabará por aderir a uma espécie de seita à qual deixa toda a sua fortuna, deserdando Patrick.

Por Fim

 passa-se no dia do funeral de Eleanor, o mesmo dia em que mais uma vez, mas de modo totalmente novo, Patrick se interroga acerca do que “significaria ser-se livre, viver-se para além da tirania da dependência e do condicionamento e do ressentimento”. Primeiro fora o medo do pai e a culpa, depois a dependência da heroína, do álcool, do sexo e dos químicos, a seguir uma depressão suicida e, finalmente, a conclusão de que “estivera apenas superficialmente enamorado pela morte utilitária e muito mais enfeitiçado pela sua própria personalidade”. Assim era Patrick: quando tremia de medo do pai depois de ele o violar numa infância que poderia ter sido feliz na casa da Provença, em 

Deixa Lá

; quando aos 20 anos foi a Nova Iorque buscar o corpo do pai, num estado de consumo compulsivo de heroína, em 

Más Novas

; quando saltava de mulher para mulher e tomava químicos, tentado conter e entender o adulto em que se transformara, em 

Alguma Esperança

; quando percebia que o seu casamento estava a chegar ao fim, entre infidelidades, álcool e dois filhos que pareciam opostos no modo como lidavam com a sua circunstância, em 

Leite Materno

.

Agora, no dia do funeral da mãe, Patrick é tomado por reflexões, o que torna Por Fim o livro mais interior dos cinco, mais interior ainda do que o muito íntimo Alguma Esperança, o terceiro romance da saga. Patrick tinha então 30 anos e estava a tentar libertar-se de um longo ciclo de autodestruição, com o autor a pôr o seu protagonista em permanente observação pessoal, criticando-se a si mesmo e à sociedade a que pertence e que despreza nos seus vícios e pretensões, e encontrando no sarcasmo, na mordacidade e na ironia um refúgio. Outro vício? O maior de todos, dirá no dia do funeral ao amigo de sempre, Johnny. “É a pior dependência de todas (…). Esquece a heroína. Tenta deixar a ironia, aquela necessidade arreigada de significar duas coisas ao mesmo tempo, de estar em dois lugares ao mesmo tempo, menos no da catástrofe de um sentido fixo.”

Tal como ao seu protagonista, a ironia guia Edward St. Aubyn — ou pelo menos a sua escrita — com uma grande eficácia. Se a vida de muitos pode dar um livro, muito poucos são os que conseguem transformar a catástrofe pessoal numa obra com a inteligência que St. Aubyn atingiu na história do seu alter ego, Patrick Melrose. O escritor confessou aliás que, pouco antes de publicar o primeiro romance, contou à mãe que tinha sido violado pelo pai; como resposta, obteve um “também eu”. A complacência de Eleanor veio dali, da sua própria mãe; o silêncio de uma — ou o seu “nada dizer”, como escreve — é o silêncio da outra. E o resto veio da sua própria história de vício e de tentativa de fim. Muitos comparam o resultado à produção de Evelyn Waugh, no retrato mordaz da alta sociedade britânica pelos olhos de um observador implacável que se rodeia de referências políticas, filosóficas, literárias e artísticas para sustentar uma escrita de elegância e perspicácia pouco comuns.

Neste livro final, Patrick está divorciado e é pai de dois filhos que parecem escapar à determinação genética que tanto temia — a de que pertencer a uma família é carregar para sempre os seus males. Confronta-se agora com um incómodo que não sabe nomear, e é nessa incapacidade que sente aproximar-se da mãe, ele que verbaliza tudo, numa “tagarelice suicida”, mesmo quando em longos solilóquios, “cavaqueando consigo”, sendo contra e a favor de si mesmo, em discussões solitárias e vivas, tão negras quanto hilariantes. “Tudo estava perfeito agora que ele era órfão. Parecia ter esperado toda a sua vida por esta sensação de plenitude. Isso era muito bonito para os Oliver Twists deste mundo, que partiram do estado invejável que a ele lhe levara quarenta e cinco anos a conseguir, mas o luxo relativo de ter sido educado por um Bumble e por uma Fagin, em vez de por um David e por uma Eleanor Melrose, estava destinado a produzir um efeito debilitante na personalidade. A pertinácia de influências potencialmente letais fizera de Patrick o homem que era hoje em dia, vivendo sozinho num pequeno apartamento, apenas um ano depois da sua última visita à Sala de Acompanhamento ao Suicídio na Ala da Depressão do Priory Hospital. Que sensação tão ancestral não retirara ele do seu delirium tremens, de se vergar, depois de uma juventude rebelde de toxicodependente, à banalidade esmagadora do álcool.”

Talvez haja salvação. Não estará no passado, aqui representado por personagens como o velho amigo de família, sabedor da perfídia de Dave, ou da tia Nancy, irmã de Eleanor, que lamenta ao sobrinho a inconveniência da data do funeral: “De todos os dias para se ter um funeral este não era de todo o dia (…). É o casamento do príncipe Carlos. As poucas pessoas que poderiam vir vão estar em Windsor.”

O desejo de consolo, de uma intimidade que nunca conheceu, terá de estar fora desse tempo onde sempre se projectou.

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