Há uma linha que separa o jornalismo da ficção

O jornalista Artur Domoslawski, cuja monumental biografia de Ryszard Kapuscinski defende que muitos dos detalhes que apimentavam os relatos do lendário repórter polaco eram inventados, esteve este sábado no LeV, em Matosinhos.

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O romancista suíço Catalin Dorian Florescu (à esq.) e o jornalista polaco Artur Domoslawski (à dir.) em Matosinhos PAULO PIMENTA

O tema previsto para a primeira mesa da tarde do LeV - Festival Literatura em Viagem, que este sábado reuniu em Matosinhos o romancista suíço de origem romena Catalin Dorian Florescu e o jornalista polaco Artur Domoslawski, eram os conflitos interiores, mas se algum tópico dominou a conversa, moderada pelo jornalista Luís Ricardo Duarte, foi talvez o das afinidades e diferenças entre a literatura de ficção e o jornalismo.

O moderador abriu a sessão pedindo a ambos os convidados que comentassem os versos iniciais do primeiro dos 35 Sonnets de Fernando Pessoa, onde este sustenta que o que escrevemos, dizemos ou aparentamos nunca verdadeiramente nos revela e que a nossa alma está a uma infinita distância de nós mesmos (“Our soul from us is infinitely far”).

Florescu e Domoslawski (ambos nascidos em 1967) concordaram que nem o ficcionista que cria uma personagem, nem o jornalista que traça um perfil, podem alguma vez estar certos de conseguir revelar a alma, o verdeiro eu, ou o que se lhe queira chamar, da figura que retratam. Mas enquanto o jornalista sustenta que a sua função é tentar fazê-lo, mesmo consciente de que nunca lá chegará, já o romancista defendeu que essa dimensão insondável do humano não lhe interessa e que aquilo que as pessoas efectivamente revelam lhe chega perfeitamente.

Lembrando que “há 70 ou 80 por cento de matéria negra no universo”, Florescu, um psicólogo especializado em toxicodependência, afirmou: “Enquanto psicólogo e escritor, tenho de admitir que talvez não toque na alma das pessoas, mas não importa: sou responsável pelos outros vinte ou trinta por cento, e já é suficientemente difícil lidar com eles”. A metáfora era interessante e a posição arrojada, mas Florescu prosseguiu com esta pomposa declaração, infelizmente seguida, ao longo da sessão, de várias outras ainda mais presunçosas: “Estou muito preocupado com a condição humana, em ser mais consciente e conseguir que os outros se tornem mais conscientes, ofereço-me constantemente, como escritores oferecemo-nos como uma dádiva aos outros”.

Ao contrário de Domoslawski que observara que o jornalista tem de ser capaz de manter alguma distância face à realidade que descreve, Florescu explicou que, como ficcionista, quando cria uma personagem, a distância é nenhuma. Evocando o último romance que publicou, Jacob beschließt zu lieben (traduzível por Jacob decide amar), que envolve um mau pai e um bom filho, Florescu garantiu: “Sou a vítima e o carrasco”.

O seu objectivo é “descrever pessoas como filhas do seu tempo e no seu próprio tempo”. E para isso, antes de escrever um romance, passa anos a investigar os tempos e lugares em que a respectiva acção decorre, e faz sempre questão de visitar os cenários onde as suas personagens se movem. “Estou em contínuo movimento, a vibrar com o mundo, a tentar perceber como o mundo funciona, e no fim escrevo”, diz. “E quando se consegue descrever pessoas que estão a viver o seu tempo em passagens densas e belas, então tem-se tudo: os seus conflitos, as suas tensões, as suas canções, os seus cheiros, o modo como falam e se vestem, está lá tudo”.

Domoslawski notou que nada de essencial distingue a investigação jornalística da pesquisa prévia do romancista que “pratica algum tipo de realismo”. Mas “o que cada um depois faz com esse material é que é outra história”, concluiu, já que “o romancista pode alterar as coisas de um modo que o jornalista não é autorizado a fazer”.

O que distingue ficção e jornalismo é o segundo estar “preso à verdade”? perguntou Luís Ricardo Duarte ao jornalista polaco. A coisa até podia ter descambado num debate mais ou menos filosófico, mas o moderador sabia que, para Domoslawski, a questão era tudo menos académica. Desde que publicou, em 2010, uma monumental biografia do seu compatriota e colega de ofício Ryszard Kapuscinski (1932-2007), possivelmente o mais prestigiado repórter internacional do século XX, Domoslawski viu-se envolvido numa interminável polémica que ainda não se extinguiu.

Ele próprio um respeitado e premiado jornalista, com vários livros publicados, alguns deles sobre temas latino-americanos, o convidado do LeV defende na sua biografia que muitas das histórias que Kapuscinski conta, e que ajudaram a celebrizá-lo – o cão de colo do imperador etíope Hailé Selassié que era autorizado a urinar nos sapatos dos altos dignitários, ou os peixes de Idi Amin alimentados com a carne das vítimas do ditador do Uganda, ou mesmo o relato de como o pai de Kapuscinski escapou ao massacre de Katyn –, eram afinal inventadas.  

Kapuscinski não era um mentioroso, “claro que não”, disse Domoslawski em Matosinhos, argumentando que o facto de o repórter ter vivido em ditadura e sujeito à censura também terá contribuído para o levar a recorrer a “alegorias”. Mas reconhece que o seu biografado “atravessava de vez em quando a linha que separa o jornalismo da literatura. E há livros de Kapuscinski que Domoslawski “tenderia a arrumar na prateleira da ficção”, porque “se chamamos jornalismo a esses livros, então estamos a dizer que os jornalistas podem atravessar fronteiras que não estão autorizados a atravessar”.

A assistência ficou ainda a saber que o próximo livro de Florescu envolve uma mulher romena que está em Nova Iorque no dia 11 de Setembro de 2001, transportando uma urna com as cinzas da mãe, no exacto momento em que cai a primeira das torres gémeas. A tampa da urna salta, conta o romancista, e as cinzas da mãe confundem-se com todas aquelas cinzas à sua volta. Florecsu explicou que acabara o livro há dois dias. “Já em Portugal?”, perguntou o moderador. “Isso era o que vocês queriam. Sabia que tinha de vir para aqui e acabei-o à noite em Zurique”.

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