Dos sapatos aos livros

Um artigo publicado na edição do PÚBLICO 22 de Maio de 1996, contando o percurso que levou o editor francês Claude Rouquet (1947-2014) a abandonar a indústria do calçado para se tornar um apaixonado divulgador da poesia portuguesa.

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Claude Rouquet e Sylviane Sambor

Se a indústria francesa do calçado não tivesse, em anos recentes, atravessado momentos críticos, a França não conheceria hoje alguns dos grandes nomes da poesia portuguesa contemporânea. Não vale a pena ler segunda vez: a frase vai parecer-lhe tão absurda como da primeira. O melhor é contar tudo do princípio e mostrar a estranha conjunção de acasos que levou o bordalês Claude Rouquet, de bem sucedido promotor de vendas no ramo dos sapatos, a editor de poetas como Jorge de Sena ou Mário Cesariny, Rui Belo ou Nuno Júdice.

Estava-se no final da década passada, e Rouquet foi assistindo à sucessiva falência das várias empresas com as quais trabalhava. Quando o filme chegou ao fim, percebeu que estava desempregado. Tinha 40 e tal anos, algum dinheiro de parte e nada para fazer. “A situação ideal — explica — para me dedicar ao que sempre me interessara”. Ou seja, os livros.

Autodidacta, quer nos meandros do negócio do calçado quer na literatura, começou a ler aos 15 anos. Fascinava-o a beleza das capas, e foi esse critério, confessa sem rebuço, que guiou as suas primeiras aquisições. Sonhou vir a ser editor. Mas nos anos seguintes iria mergulhar verdadeiramente no interior dos livros, tornar-ser um leitor compulsivo e apaixonado, sobretudo dos poetas — e a revelação assustou-o, fê-lo duvidar das suas aptidões para uma missão tão grave como era, a seus olhos, a de criar suportes físicos para o génio dos outros. Os editores, muitos editores, não eram, claro, o que ele imaginava que fossem. Não eram aquilo que ele é hoje: alguém que publica por pura paixão, incapaz de apostar num livro que lhe pareça medíocre, ainda que comercialmente promissor.

Que as vendas e lucros não são coisas que o inquietem excessivamente, é óbvio. Se tivesse montado a sua editora — a L’Escampette — para ganhar dinheiro, é de crer que investisse em terrenos mais seguros do que o da poesia portuguesa, que não vende cá, e muito menos em França, onde a tiragem de um livro de poemas de autor indígena, por bom que seja, raramente ultrapassa os mil exemplares.

A paixão de Claude Rouquet pela literatura portuguesa é a segunda parte da história, o segundo acaso. Até ao final dos anos 80, Portugal resumia-se, para ele, a algumas feiras de calçado, um país que apenas visitava por razões profissionais. Mas a jovem com quem já então vivia em Bordéus, Sylviane Sambor, andava fascinada com os nossos autores e metera na cabeça divulgá-los em França. Em 1988, Sambor organiza um primeiro encontro com escritores portugueses, iniciativa que prosseguirá em anos posteriores com a designação de Primaveras Portuguesas em Bordéus. É assim que Claude Rouquet conhece Nuno Júdice, que virá a ser o primeiro poeta a surgir na L’Escampette.

No final de 1997, o editor tenciona ter já publicados 20 livros de poesia portuguesa, num total de edições que rondará, então, a meia centena. Nesta vintena, incluem-se os volumes da colecção Clássicos da Poesia Portuguesa, um projecto que Rouquet vem desenvolvendo com base num rol de 15 nomes elaborado por Eduardo Prado Coelho e Maria de Lourdes Belchior. A L’Escampette editou até ao momento antologias de Bernardim Ribeiro, António Nobre, José Régio, Jorge de Sena, Mário Cesariny e Ruy Belo. Almeida Garrett será lançado já em Julho; e em 1997 será a vez do Camões lírico, de Bocage, de Antero de Quental (cuja edição será prefaciada por Antonio Tabucchi) e de Alexandre O’Neill. O conjunto completar-se-á com um volume de poesia medieval e com a publicação de Sá de Miranda, Teixeira de Pascoaes e Carlos de Oliveira.

Tendo em conta que Rouquet não olha aos tostões no que toca à apresentação gráfica dos livros que edita — tarefa de que se ocupa pessoalmente e com resultados francamente notáveis —, só lhe é possível dar a lume uma colecção como esta por dispor do apoio de instituições portuguesas, designadamente o Ministério da Cultura, o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, que paga as traduções, e o Instituto Camões. Contudo, já correu o risco de avisar que levará o projecto até ao fim mesmo na indesejável eventualidade de deixar de receber os subsídios.

E tem-se lançado a divulgar autores que escapam a este acordo, como Al Berto e João Miguel Fernandes Jorge, além do já referido Nuno Júdice. Uma lista ainda curta, mas que em breve se alargará com antologias de Sophia de Mello Breyner Andresen, Vasco Graça Moura e Joaquim Manuel Magalhães. E prevendo que não seria fácil convencer os leitores franceses a adquirir obras de autores  que lhes são, na maioria dos casos, inteiramente desconhecidos, publicou ainda, para efeitos de mostruário, uma antologia da poesia portuguesa do século XX.

Embora não disponham de uma ligação formal, os projectos de Sylviane Sambor e Claude Rouquet entrelaçam-se naturalmente; com os livros do segundo a garantir uma influência duradoira às iniciativas que a primeira organiza. Mas se Sambor só convida os escritores de quem realmente gosta, recusando qualquer outro critério, também Rouquet só edita o que lhe agrada, independentemente das preferências da sua companheira.

Os próprios encontros de Bordéus, embora se devam no essencial à paixão e dinamismo de Sylviane Sambor, não seriam bem o que são sem o particularíssimo humor de Claude Rouquet. Era vê-lo, neste último encontro de Bordéus, a apresentar Eduardo Lourenço a uma israelita: “Um grande escritor português, com um percurso pouco vulgar; foi vocalista de uma banda rock e treinador de futebol...”.

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