Do lado de dentro do mal

Descendo ao horror nazi na perspectiva do agressor e da sua estranha normalidade, Martin Amis põe à prova a capacidade da linguagem para dizer o indizível

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Martin Amis regressa a um dos temas da sua escrita, a terrível banalidade do mal no século XX, e em particular a barbárie nazi Daniel Rocha

É, sobretudo, uma zona de desconforto, de grande perturbação, este 14.º romance de Martin Amis (n. 1949) — e essa constatação é a primeira grande conquista do escritor que arriscou investir num tema tão explorado por tanta literatura, incluindo a sua.

Depois de ter falado dos campos de extermínio nazis em Time’s Arrow (1991) e de ter escrito sobre as vítimas da União Soviética de Estaline em Koba, o Terrível (2003), o escritor britânico situa o seu mais recente romance nos bastidores de um campo de concentração nazi na Polónia, ou seja, no lado onde vivem os oficiais das SS: uma normalidade feita de encontros amorosos semi-clandestinos, festas, jantares, arranjos sexuais, espectáculos, humor pícaro e um odor que denuncia o mal.

Estamos no fim do Verão do 1942 e poucas coisas são chamadas pelo nome neste território de dissimulação que Martin Amis reconstitui numa linguagem que quis ajustada ao indizível. Nunca o mal assumiu tal dimensão e a questão que atravessa o livro é o porquê: o que motivou um horror àquela escala? Essa questão leva a outra: como ajustar a linguagem a tal perplexidade?

Há três protagonistas: Angelus “Golo” Thomsen, um oficial de segunda linha das SS, não-apoiante do regime, como grande percentagem da população alemã; Paul Doll, o comandante do campo, casado com Hannah, a mulher porque quem o oficial se apaixona; e Szmul, um dos judeus que pactuam com os alemães na execução dos outros judeus e cuja função é, entre outras, a de empilhar os corpos e seleccionar os seus pertences em troca de mais uns dias ou meses de vida e de uns cigarros. Szmul materializa a mais rasteira condição humana: “Na realidade, somos os homens mais tristes na história do mundo. E entre todos estes homens muitos tristes eu sou o mais triste”, diz “o mais baixo dos números”.

Os três, cada um ao seu modo, tendem a olhar-se como representantes de uma certa normalidade. “Persistem três razões, ou pretextos para continuar a viver: primeiro testemunhar, e, segundo, exigir vingança mortal. Eu sou testemunha; mas o espelho mágico não me mostra como um assassino. Pelo menos ainda não”, declara Szmul; “Eu sou um homem normal com necessidades normais. Eu sou completamente normal. É isto que ninguém parece compreender”, afirma Paul Doll; Thomsen, sobrinho do secretário de Hitler, personifica o ideal ariano. É um burocrata capaz de ver o mal, mas incapaz de se rebelar: a sua normalidade, naquele presente histórico, é o campo. Tal como ele, também os outros dois carregam a sombra da banalidade que inspirou o ensaio de Hannah Arendt sobre o horror nazi — e é a partir dessa ideia que Martin Amis alicerça este romance realista onde se coloca não na cabeça da vítima, mas na do agressor, desafio terrível para o qual convoca o leitor. Pôr-se na cabeça de alguém é tentar a empatia, mas como fazer isso quando permanece a incompreensão, quando não se entende uma cabeça que, ao longo do livro, se apresenta, cada vez mais e mais, de uma racionalidade demente? É aí que entram a linguagem e a sua função. Ao escolher esse caminho, Amis tem de ser verosímil — ou então falha.

A Zona de Interesse

 começa por uma história de amor. Um homem apaixona-se por uma mulher e essa parece a maior contradição num cenário de extermínio. “Eu não desconhecia o clarão do relâmpago; não desconhecia o raio. Tenho uma invejável experiência em tais matérias, não desconhecia o temporal — o temporal e, depois, o sol e o arco-íris.” A voz é a de Thomsen, o oficial que trabalha sob ordens de Paul Doll, o comandante, marido de Hannah, e outra das vozes que Martin Amis escolhe para construir o horror sem nunca o nomear “horror”. Vamos sabendo dele pelo desenrolar de uma normalidade doentia, parca em adjectivos, interior, manifestada em diálogos onde quase sempre muito parece ficar por dizer; à medida que esses diálogos ocorrem, porém, percebe-se que esse não-dito é quase sempre supérfluo, dispensável, como o nome de Hitler. Nem uma vez o nome aparece, mas ele é o grande fantasma que tudo comanda e que se faz sentir numa dimensão quase transcendente.

É no quotidiano, no lado doméstico, que o mal se adensa e se instala — contagiante, pegajoso, como o cheiro que sai das chaminés, no complexo composto pelo próprio campo de extermínio de Auschwitz e pela vila onde vivem os oficiais nazis e as suas famílias. A este conjunto chama-se a “zona de interesse”, e é a partir da vivência dentro do seu perímetro que se questionam a “Humanidade e o seu tortuoso potencial”, como refere Boris, amigo de sempre de Thomsen, um pouco menos oportunista do que o próprio Thomsen na sua tendência para falar mais do que era suposto a um diligente oficial. Ambos estão desencantados com o caminho que a Alemanha escolheu e prevêem a derrota numa guerra onde, como nota por sua vez Szmul, “a noção de conexão não existe”.

A eficácia do livro de Martin Amis está no modo como cruza a bestialidade, o horror, com a vivência do dia-a-dia. É aí que está a sua força. No modo como o leitor sente estar tantas vezes incomodamente próximo do outro, sendo o outro o executante do mal que permanece por entender. Como sentir empatia, nem que seja momentânea, com o homem que recebe mais um comboio de judeus com este discurso: “Muito bem! Primeiro, escoltá-los-emos até à sauna para um duche quente, antes de se instalarem nos vossos aposentos. É uma pequena caminhada pelo bosque de bétulas. Deixem as vossas malas aqui, por favor. Podem depois reavê-las na pensão. Chá e sanduíches de queijo serão servidos imediatamente, e mais tarde comerão um guisado bom quentinho. Em frente!”

A interrogação, como o fumo que sai das chaminés, vai-se acentuando e instalando como um mal-estar num cenário onde o grotesco e a paixão coexistem, mas o amor é remetido para um tempo futuro. No presente — como alguém dirá — há um povo que tenta eliminar outro copiando algumas das suas características, incluindo a ideia de que é um povo eleito. Thomsen, como Boris, cumpre aqui a função ambivalente de ser ao mesmo tempo parte da acção e a sua má consciência. Szmul, por seu lado, arca com a culpa e a impossibilidade de viver com a memória da traição. Doll, na sua auto-avaliação, insiste na normalidade e isso é cada vez mais insano. “É um regime dos criminosamente loucos. E estamos a perder”, diz Boris. “Eu pensava que a noite estava a vencer, Golo. Pensava que a noite venceria e que depois veríamos.”

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