Ao abrigo do Panteão

Nada contra a pantheonização (palavra bárbara, que nem um h consegue salvar) de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas a cerimónia não deve ser poupada a uma reclamação: exceptuando o discurso de José Manuel dos Santos, com a sua dose equilibrada de justeza e de tom enfático adequado à circunstância, tudo o resto decorreu por conta do demónio do kitsch.

Ele espreitou por todo o lado, até nos ornamentos artísticos que acompanharam a pompa. Com grandiosidade estática, ele foi a figura de invocação – a suprema musa – do discurso de Assunção Esteves, que podemos definir como um extracto farmacêutico, quimicamente depurado, do kitsch resultante da síntese de dois elementos: a “sensibilidade poética” em estado de exaltação e a moral da responsabilidade cívica dos poetas, a que a presidente da Assembleia da República deu o nome de “ética”, ou seja, nada mais nada menos do que aquilo que dantes, a léguas da Igreja de Santa Engrácia, se chamava ideologia.

“Sublime” foi a palavra que mais vezes repetiu, até fazer dela um ritornelo. Tão altas foram as suas palavras que a vertigem das alturas atingiu muitos dos que fizeram o esforço de a ouvir. Aos cumes do sublime e do inefável não se chega sem entusiasmo místico e neles não se permanece sem cortes na respiração. A poesia nunca foi boa coisa para o pneuma, por isso é que a tuberculose foi a doença por excelência de quem elevou a poesia ao absoluto: os românticos.

Mas a inclinação de Assunção Esteves para as alturas estonteantes do cliché e da vazia eloquência teve correspondência em lugares mais rasteiros e fez coro com uma legião de devotos, formada por jornalistas e comentadores, que pudemos ouvir nos vários canais de televisão. De onde vem tanta devoção? Qual a origem desta ideia fanática da poesia como uma religião civil que, na circunstância presente, encarnou, no seu grau máximo de evidência, na figura de Sophia? Poderíamos dizer que tal ideia de poesia vem da ausência de uma ideia sobre ela, como escreveu uma vez Paul Valéry: “A maior parte das pessoas tem da poesia uma ideia tão vaga que, para elas, a definição de poesia é precisamente o que há de vago na ideia que têm dela.”

E porque o vazio que existe nessa ideia precisa de ser preenchido, a poesia – não só no percurso que vai da Assembleia da República ao Panteão, mas também em todos os percursos que a afastam da guerra e do atrito das palavras e a levam para a região pacífica das virtudes – ganha o valor de uma magia, de uma mística, de uma religião civil e de uma moral.

Ou seja: tudo aquilo que ela não é. Uma vez instalada nessas regiões, é lícito dizer, como fez Miguel Sousa Tavares, que a poesia de Sophia “não precisa nem de crítica nem de explicações”. Eis uma outra versão da poesia como inefável, mais devedora da arrogância que todo o opinador profissional cultiva como insígnia do que da metafísica dos pobres oferecida por Assunção Esteves.

Nesta versão que repele a crítica e as explicações (será o comentário, será a interpretação?), não há nada a dizer sobre a poesia de quem tinha acabado de receber a mais alta homenagem póstuma. A única coisa que devemos fazer – presume-se – é celebrá-la e escutá-la como uma evidência, pairando, eterna, sobre toda a recepção crítica. Ora, ela é grandiosa exactamente porque lhe sobra muito mais do que celebração e transparência. E porque reclama a crítica, sem a qual, aliás, ao contrário do que pensam os cultores de dogmatismos de filisteu e os fiéis dos prestígios parasitas da poesia, Sophia não teria lugar em nenhum Panteão. 

 

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