Abismos transcendentes

O mais ambicioso e notável empreendimento do Lied schubertiano, com um enorme Matthias Goerne.

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É a terceira vez que Matthias Goerne grava o grande ciclo de Schubert: esta é a sua abordagem mais sombria e torturada Marco Borggreve

Pondo à parte a completíssima Hyperion Schubert Edition, em 37 volumes (mais três CD de canções de amigos e contemporâneos do compositor, várias delas com os mesmos poemas musicados por Schubert), gizada por Graham Johnson e com uma plêiade de intérpretes vocais, também por isso bastante irregular (além de que Johnson, scholar de rara competência, não é propriamente o mais imaginativo dos pianistas-acompanhadores...), a antologia de Matthias Goerne, que foi sendo publicada entre 2008 e o final de 2013, é sem dúvida o mais ambicioso e notável empreendimento no campo discográfico do Lied schubertiano — e não só — desde a integral das canções para vozes masculinas por Dietrich Fischer-Dieskau e Gerald Moore.

No enunciado anterior está já uma diferença de vulto: aquela era uma integral, esta é uma antologia. A primeira inclui 21 discos, a segunda 12, em nove volumes, três dos quais portanto duplos. E há ainda outra diferença de relevo: se todos os três ciclos, Die schöne Müllerin, Winterreise e Schwanengesang, contam com o mesmo pianista, Christoph Eschenbach, quase todos os outros volumes têm diferentes acompanhadores, à excepção de dois, duplos, An mein Herz, o segundo, e Wanderers Nachtlied, o penúltimo, sendo que Helmut Deutsch participa num dos CD e Eric Schneider no outro.

Estas particularidades não são fruto de casualidades e circunstâncias, mas sim de escolhas e exigências, o que se aplica aliás ao conteúdo da antologia, já que Goerne, cujo timbre se tem tornado muito mais sombrio, optou por gravar apenas as canções mais intrinsecamente consentâneas com o seu presente perfil vocal e interpretativo. Se, com todos os riscos de simplificação, intentarmos definir o empreendimento, a antologia pode bem ser considerada a proposta interpretativa mais sombria e torturada da discografia dos Lieder de Schubert — de toda a canção alemã, arrisca-se mesmo dizer. Isso mesmo não deixa de estar patenteado nestes dois últimos volumes, um e outro colocados sob o signo do viandante e de uma atormentada errância.

Exemplos são muitos. Em Wanderers Nachtlied a inquietação e o tom fantasmagórico de Der Tod und das Mädchen (A Donzela e a Morte, germe do famoso quarteto do mesmo nome), a veemência de Der Zwerg, tal como aliás de Ganymed, este com um espantoso crescendo dramático, a alucinação de An den Mond, a inquietação de Versunken ou a ameaça tenebrosa de An Schwager Kronos; não deixa, porém, de haver contrastes intercalados como, por exemplo, um resplandecente In Frühling (com o piano de Deutsch particularmente deslumbrante), ou o momento de repouso de Der Einsame (de resto em interessante contraste com o piano sempre mais denso de Schneider, enquanto o de Deutsch é bem mais transparente). E do Wanderer, do Viandante, a passagem é óbvia e óbviamente pensada à Reise, a Viagem.

É a terceira vez que Matthias Goerne grava o grande ciclo. Fora ele já o escolhido por Graham Johnson para a Hyperion Editon, depois houve uma arrebatadora gravação com Alfred Brendel, nem menos!

Este novo registo é ainda pungente, de alguns momentos — Rüblick, por exemplo — verdadeiramente lancinantes, de uma tortuosa solidão — Der Wegseimer —, até a um miraculoso Der Leiermann, em que, abrindo-se ou não um horizonte, certamente se antevê a possibilidade de um descanso, percorrida que está a dolorosa viagem — dor que o piano de Eschenbach sem cessar acentua.

Sem receio de hipérboles, este ciclo Schubert de Mathias Goerne é seguramente um dos grandes, enormes empreendimentos da interpretação de Lied em disco. Transcendente!

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