A obra-prima de Céline, agora totalmente à letra

Uma edição fac-similada reproduz pela primeira vez o manuscrito original de Viagem ao Fim da Noite.

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Céline vendeu o original de Viagem ao Fim da Noite em 1943 por dez mil francos e um pequeno quadro de Renoir

Não é um facto, é uma lenda – mas quando se trata de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), um dos escritores mais malditos do século XX, lenda e facto contam exactamente o mesmo para a biografia (e entre um e outro, venha o diabo e escolha) – que em 1943, quando decidiu vender os quatro quilos do manuscrito do seu primeiro romance, Viagem ao Fim da Noite (1932), Céline tê-lo-á transportado num carrinho de mão até ao local onde se encontrou com o marchand Étienne Bignou e então se desfez dele para sempre em troca de dez mil francos e um pequeno quadro de Renoir.

O que se segue é igualmente lendário: Bignou reclamou que faltava o último capítulo, Céline copiou-o à mão no verso do rascunho de Casse-Pipe e o original ficou finalmente completo, passando de 876 para quase mil  páginas. Depois, desapareceu completamente de cena e nunca mais se falou dele até que subitamente, em 2001, o livreiro parisiense Pierre Berès anunciou ter sido contactado por um coleccionador inglês que tinha consigo um maço de largas centenas de páginas encabeçado por uma folha onde se lia: "Voyage au bout de la nuit. Seul manuscrit. LF Céline 98 Rue Lepic". Dos 55 anos que decorreram entre a venda e o reaparecimento do manuscrito nunca se soube grande coisa – o volume terá tido uma vida só dele: facto, não lenda –; entretanto, um leilão extraordinariamente concorrido acabou com a Biblioteca Nacional de França a exercer o seu direito de preferência por 1,67 milhões de euros (um recorde absoluto ultrapassado meses depois pelo manuscrito de On the Road, de Jack Kerouac) e a guardar o manuscrito num cofre do qual saiu muito excepcionalmente para consulta de escassos investigadores. 

Novo salto quântico (desta vez apenas de 13 anos) e eis que a obra-prima de Céline chega às lojas tal como se tivesse acabado de ser escrita: na caligrafia original do escritor, letra por letra, em folhas quadriculadas ou nas costas de impressos do dispensário de Bezons, onde então trabalhava como médico. A edição fac-similada, de tiragem limitada a mil exemplares, é uma iniciativa das edições Les Saints-Pères, especializadas na publicação de manuscritos originais (títulos anteriores da colecção: La belle et la bête, de Jean Cocteau; L'écume des jours, de Boris Vian; Hygiène de l'assassin, de Amélie Nothomb; e Le Mépris, o argumento original de Jean-Luc Godard). Através do site da editora (também está disponível na Amazon), é possível pôr as mãos nesta versão especialmente fiel de um dos romances seminais do século XX por 236 euros – estojo de luxo incluído. Um "acontecimento editorial", escreveu a revista Le Point, destacando não só a felicidade de poder redescobrir Céline nos seus exactos termos como a curiosidade acrescida de testemunhar as perplexidades suscitadas pelo uso radical do calão à dactilógrafa a que o escritor recorreu para transcrever o texto à máquina, e que nele interveio com sucessivos círculos e pontos de interrogação vermelhos.

 

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Uma página do manuscrito de Viagem ao Fim da Noite

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