A arte que hoje se faz em Portugal mostrada aos franceses

Uma “cartografia da criação contemporânea portuguesa” é como o curador Miguel von Hafe Pérez apresenta a exposição inaugurada terça-feira na Gulbenkian de Paris. Rui Ramos está a fazer a história do meio século da fundação na capital francesa.

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O terceiro burro, de João Maria Gusmão & Pedro Paiva DR
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S/título, de Ana Santos DR
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Anti-monumento, de André Cepeda DR
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Quatro meses do quotidiano de Antuérpia, de Carla Filipe DR
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Construção pictórica, de Carlos Bunga DR
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The poor bastard, de Arlindo Silva DR

A inauguração da exposição colectiva Au Sud d’Aujourd’hui foi um dos momentos fortes do programa com que a Fundação Gulbenkian assinalou formalmente, esta terça-feira, a passagem dos 50 anos da sua delegação em França. Miguel von Hafe Pérez, o comissário, chamou-lhe “uma cartografia da arte portuguesa contemporânea”, mas “sem Portugal”. Ou seja, “inscrita de forma progressiva e decisiva no contexto mundial”.

Os dez artistas – na verdade, 12, já que a lista inclui as duplas João Maria Gusmão & Pedro Paiva e Von Calhau (Marta Baptista e João Alves) – representados são Ana Santos, André Cepeda, Arlindo Silva, Carla Filipe, Carlos Bunga, Daniel Barroca, Mauro Cerqueira e Sónia Almeida, além dos citados.

É uma mostra diversificada e abrangente aquela que se oferece, até 13 de Dezembro, ao visitante da delegação francesa da Gulbenkian: há pintura e escultura, cinema e fotografia, colagens e assemblages; há peças instaladas no chão e na parede, outras dependuradas e em imagens em movimento...

Uma mosca pousando na extremidade de uma tábua de madeira desfaz o equilíbrio de uma das composições que Gusmão & Paiva encenam num filme em 16mm, Fulcrum (2005), um dos temas – a gravidade, a ciência, a alquimia – que esta dupla vem tratando em diferentes suportes, mas sempre recorrendo a meios analógicos de outros tempos. Já noutra sala da galeria Gulbenkian, outra obra de Gusmão & Paiva, O Terceiro Burro (2013), coloca ao espectador a dúvida sobre as circunstâncias em que um burro (ou serão três, ou um sem número deles…) foi fotografado no enquadramento de uma paisagem sem tempo nem geografia.

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Obras de Carla Filipe e Daniel Barroca Alexandre Nicoli

Os dois artistas “operam a partir de um pensamento especulativo que não desdenha o potencial do absurdo”, escreve Pérez no catálogo da exposição.

Ao entramos na sala maior da delegação, deparamos com um estranho jogo de expressões, entre o minimalismo do trabalho de Carlos Bunga e da escultura de Ana Barros, o gesto da pintura de Sónia Almeida e a noite perturbante da fotografia de André Cepeda. Bunga, um dos artistas desta selecção com maior reconhecimento internacional, tem vindo a desenvolver uma obra muito site specific, que dialoga efemeramente com o espaço em que intervém. Não é este, no entanto, o caso das duas peças que agora mostra em Paris, Dos Fragmentos Suspendidos (2013) e Construção Pictórica (2012): respectivamente uma espécie de espanta-espíritos de grande simplicidade e fragilidade, e uma janela-pintura também feita de materiais pobres, como o cartão. São obras de equilíbrio periclitante, que “reflectem directamente sobre as condições simbólicas da estruturação do espaço”, nota Miguel Pérez.

Já Ana Santos, Sónia Almeida e André Cepeda explicaram ao PÚBLICO, in situ, as circunstâncias das obras que mostram em Paris. A primeira, nascida em Espinho, formada no Porto e agora a trabalhar em Lisboa, expõe aqui pela primeira vez. As suas esculturas tinham já sido mostradas no Porto (Galeria Quadrado Azul), mas em conjuntos diferentes. “Foi o Miguel Pérez quem as escolheu e reuniu em função do próprio espaço”, explica Ana Santos, que expõe três peças s/título marcadas também por uma grande simplicidade: um tubo de cobre pintado, uma rede de arame e uma construção em madeira. “São declinações formais de bocados do quotidiano de uma simplicidade desarmante”, diz o comissário, referindo-se a esta artista que normalmente gosta de desestabilizar as estruturas geométricas mais convencionais.

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Obra de Sónia Almeida Alexandre Nicoli

Sónia Almeida, nascida em Lisboa, com um mestrado feito em Londres, mas radicada em Nova Iorque, apresenta duas pinturas de dupla face presas à parede com dobradiças, Knights Move Thinking/ Physica Rocks (2013). No chão, Blue Filter (2013) prolonga a sua propensão para a abstracção, mesmo quando trabalha sobre texturas do real, como as fotocópias a preto-e-branco no verso das duas primeiras obras, a partir de fotografias de mármore e de rochas da Serra da Estrela. “Fiz estes trabalhos para a feira de Basel de 2013. Algumas das imagens aparecem traduzidas em pinturas”, diz a pintora, a quem interessou trabalhar “o significado da pintura através do claro e escuro activado pela luz”.

Na mesma sala, André Cepeda estreia uma sequência de oito fotografias, Anti-Monumento (2015), que captam cores e planos inesperados do Monumento ao Empresário, de José Rodrigues, na Avenida da Boavista, no Porto, desde há vários anos em avançado estado de degradação.

“É uma peça de arte pública que faz parte do meu imaginário, e que acho que é altamente simbólica, também: foi inaugurada em 1992 por Cavaco Silva, primeiro-ministro”, diz o fotógrafo, explicando que realizou estas fotografias à noite, aproveitando a solidão e o silêncio. Agora de regresso à Gulbenkian de Paris, onde no ano passado participou na colectiva The New Social, comissariado por Sérgio Mah, Cepeda explica que este é um trabalho ainda em desenvolvimento. E reafirma a sua preocupação pelos temas de ordem política, social e económica.

Numa pequena sala ao lado, Mauro Cerqueira instalou DVDPS2/3 (2014), uma assemblage de objectos que recuperou na zona histórica do Porto, na Rua dos Caldeireiros, onde tem o seu atelier e dirige o espaço A Certain Lack of Coherence. É o tema da pobreza e do abandono das populações vizinhas que motivam esta composição feita de filmes e jogos da Playstation vindos de feiras de velharias, ao lado de peças de sinalização de ruas. “É um comentário crítico ao sistema das artes, mas também à gentrificação urbana”, e simultaneamente um elogio “da economia dos afectos e da resistência”, nota o comissário.

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Obra de André Cepeda Alexandre Nicoli

A parede dos Von Calhau tem quatro composições gráficas feitas a partir de letras e palavras, Fincípio/ Mesmo même/ Arreterra/ Exit (2015). Marta Baptista e João Alves explicam que trabalham os elementos que lhes surgem. “São eles que vêm ao nosso encontro, sem os procurarmos”, e, neste caso, trabalharam sobre signos que possam ser entendidos também pelo público francês, numa cidade onde se estão a estrear.

Em frente, a pintura hiper-realista de Arlindo Silva – The Poor Bastard (2002) e Mãe (2009) – capta momentos da intimidade do próprio artista: a mãe, retratada de costas no banho, à procura do “mistério da cartografia dos seus sinais”; e Marco, “uma espécie de irmão mais novo”, com que encerrou a série de “retratos de amigos” O Apartamento.

O percurso de Au Sud d’Aujourd’hui encerra com fotografias de Daniel Barroca, Mapa de Cumplicidades (2011), e colagens de Carla Filipe, Quatro Meses do Quotidiano de Antuérpia. Reflexão sobre a sua residência artística nesta cidade belga, os recortes, textos e fotografias de Carla Filipe regista as impressões da sua própria experiência, com referências sociológicas e outras. “Todos estávamos de passagem. Tive a sorte de ser sempre eu a primeira a partir”, escreve a artista numa das suas peças dependuradas do tecto.

Daniel Barroca foi descobrir no álbum de fotografias do pai memórias da sua participação na Guerra Colonial, na Guiné-Bissau. São três fotografias, de grande formato, sobre momentos de lazer, onde o artista inscreve linhas de cumplicidades ligando os olhares dos militares. A série termina, num canto, com um incómodo ruído de fundo – “uma fissura hermenêutica”, chama-lhe Miguel Pérez –, a pontuar uma pequena foto de dupla face que representa Barroca criança e o corpo de um soldado negro morto, imagem que estava escondida no álbum do pai. Como se este, como o próprio país, não tivesse encontrado ainda a forma de enfrentar, e exorcizar, o passado.

O jornalista viajou a convite da  Fundação Gulbenkian

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