Sue Townsend (1946-2014): A escritora que conseguiu mesmo pôr-se na pele de um adolescente

A autora dos livros da série Adrian Mole morreu quinta-feira aos 68 anos. Sue Townsend criou um adolescente que se tornaria o anti-herói da juventude inglesa da década de 1980, e cujos diários foram até hoje lidos em 30 línguas por milhões de leitores de todas as idades

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Sue Townsend em 2001 quando participou no Edinburgh Book Festival Colin McPherson/Corbis

Sue Townsend, a escritora britânica que criou Adrian Mole, o rapaz de 13 anos e ¾ em cujo diário os adolescentes ingleses dos anos 80 se sentiram retratados, morreu na quinta-feira em sua casa. Tinha 68 anos e sofria há muito de diabetes, que a foram progressivamente cegando: os seus últimos livros foram já ditados ao seu filho mais velho.

Calcula-se que, no seu conjunto, os oito livros da série Adrian Mole, inaugurados em 1982 com O Diário Secreto de Adrian Mole aos 13 Anos e ¾, tenham até hoje vendido em todo o mundo cerca de dez milhões de exemplares. Mérito de um adolescente de uma família de classe média baixa, que relata o seu quotidiano nas páginas de um diário, falando da família e das suas ambições literárias, das borbulhas e da sua bem-amada Pandora, e de outras coisas que compreensivelmente o perturbam, como o facto de nunca ter visto um cadáver ou sequer, já que se fala nisso, um genuíno mamilo: “Acabo de reparar que nunca vi um cadáver ou um bico de maminha verdadeiro. É o que dá viver num beco sem saída”.

Adrian é também um precoce comentador político: “Por vezes penso que a Sra. Thatcher é um tipo de mulher simpática. Mas no dia seguinte vejo-a na televisão e assusta-me de morte. Tem olhos de assassino psicopata, mas uma voz de pessoa terna. É um bocado confuso”.

A criadora de Adrian Mole esteve em Portugal em 2001, para participar numa conferência promovida pelo Porto 2001, e contou, na altura, que aprendeu a ler com oito anos, com a ajuda da mãe, e que depois começou a frequentar bibliotecas e chegava a ler três livros por dia.

Desde que a sua morte foi anunciada, as redes sociais encheram-se de mensagens de leitores, e muitos dizem que os livros de Adrian Mole foram os primeiros que leram até ao fim.

Ao livro que inicia a série, O Diário Secreto de Adrian Mole aos 13 Anos e 3/4, um best-seller traduzido para 30 línguas, seguiram-se outros sete, publicados nos anos 1980 e 1990 e na primeira década do século XXI. E Adrian não fica eternamente adolescente, como acontece com muitos protagonistas de livros infanto-juvenis: acompanhamos o seu crescimento até 2007, ano da acção de Adrian Mole: The Prostrate Years (2009). E à medida que o tempo passa e Adrian vai envelhecendo, assiste a sucessivos contextos políticos nacionais e internacionais, do thatcherismo à governação de Tony Blair, e da guerra do Golfo à do Iraque.

Townsend não tinha em relação a Thatcher sentimentos tão contraditórios como os de Adrian. Assumidamente de esquerda, não gostava da “dama de ferro”. Mas talvez ainda simpatizasse menos com Tony Blair, sobretudo desde que este levou o país a participar na guerra contra o Iraque. Não por acaso, daria  a um dos seus livros o título  Adrian Mole e as Armas de Destruição Maciça (2004).


Até o juiz ficou a ouvir
Filha de um carteiro, e a mais velha de cinco irmãs, Sue Townsend nasceu em 1946 em Leicester. Abandonou os estudos aos 15 anos, tendo tido vários empregos desde o final de adolescência. Trabalhou designadamente numa loja de roupas, da qual foi despedida por ter sido apanhada a ler a Ballad of Reading Gaol, de Oscar Wilde, num dos cubículos em que os clientes provavam as peças.

Casou-se aos 18 anos com um operário metalúrgico e quando fez 22 anos era já mãe de três filhos. Um cenário que não lhe deixaria muito tempo livre para a criação literária, embora escrevesse em segredo desde os 14 anos.
Quando começou a trabalhar no livro que iria mudar radicalmente a sua vida, estava já a meio da casa dos trinta. Mas vinha treinando a mão desde o final dos anos 70, compondo algumas peças de teatro.

E foi justamente o que o diário do adolescente Adrian começou por ser: uma peça de teatro. O actor Nigel Bennet leu, gostou, e enviou o texto para a BBC, cujo responsável pelo departamento de teatro radiofónico, John Tydeman, decidiu pô-lo no ar. O êxito foi tão grande que a BBC criou uma série em vários episódios, que as pessoas ficavam a ouvir no carro, ao princípio da manhã, antes de ir trabalhar. Ficou célebre na imprensa da época o caso de um juiz que assumiu que se atrasara para a audiência porque ficara a ouvir o final de um episódio.

Com a publicação dos primeiros livros de Adrian Mole, nos anos 1980, Townsend conseguiu estabilidade financeira, algo de que nunca até então disfrutara.Até então, contaria depois a própria escritora ao jornal Telegraph, vivia numa casa de renda subsidiada, sem carro e sem telefone.

Recebeu um adiantamento de 500 libras pela primeira edição de O Diário Secreto de Adrian Mole aos 13 anos e ¾, publicada numa tiragem de cinco mil exemplares. Townsend receou que não se vendessem. Três anos depois, o livro já vendera 1,9 milhões de exemplares em todo o mundo. E a rapariga que abandonara os estudos aos 15 anos, iria ver-se, meio século mais tarde, doutorada honoris causa pelas universidades de Leicester e Loughborough.


“Adrian Mole c’est moi
Ao contrário de Townsend, a quem não faltava o talento que receava não ter, a sua criação, Adrian Mole, é um adolescente que sabe no mais fundo de si que é um grande escritor, ainda que a concretização das suas ambições literárias seja infelizmente dificultada pelo facto de não ter sido bafejado pelo menor resquício de talento literário.
Adrian Mole cresceu em Leicester e vem de uma família remediada de operários não especializados. É um adolescente normal, admitindo que os termos não sejam contraditórios entre si, cujo diário nos vai relevando a sua vida interior, ao mesmo tempo que traça um retrato da Inglaterra dos anos de Thatcher.

Como todos os adolescentes, Adrian leva-se tremendamente a sério, e faz-nos rir precisamente na exacta medida em que não consegue rir-se de si próprio. Um adolescente suficientemente convincente para que boa parte dos adolescentes ingleses da época se tenha revisto nele, contribuindo para tornar os livros de Adrian (e as séries de rádio e televisão baseadas na personagem) um caso de sucesso quase sem rival nos anos 1980.“Talvez quando eu for famoso e o meu diário for descoberto, as pessoas percebam o tormento que é ser um intelectual ignorado de 13 anos e ¾”, escreve Adrian numa das primeiras entradas do seu diário.

Como Townsend, Adrian é um leitor intenso e precoce. E tende a cruzar as suas leituras com as peripécias e dramas do seu quotidiano. “Boa parte do tempo, sinto-me como uma personagem de um romance russo”, confessa. E quando os pais se separam, encontra-se adequadamente mergulhado na leitura de Madame Bovary  —  “Adrian Mole c’est moi”, diz Townsend numa entrevista —, como forçará os olhos a ler à luz das velas Tempos Difíceis, de Dickens, quando cortam a electricidade em sua casa.

“Um clássico apetitoso”

O Diário Secreto de Adrian Mole aos 13 anos e ¾ saiu em Portugal em 1986, na Difel, quando era já um best-seller internacional. No Expresso, Clara Ferreira Alves e Tereza Coelho recomendaram o livro com entusiasmo. Tereza Coelho abria a sua recensão com uma breve descrição do protagonista: “Acha Orgulho e Preconceito um bocado antiquado – ‘Jane Austen devia escrever uma coisa mais moderna’ –, vai ao médico de propósito para mostrar uma borbulha minúscula que tem na cara e lhe parece gigantesca, resolve que tudo se conjuga para ele ser um intelectual: ‘Um mau lar, um regime alimentar fraco, e não gostar de punk’”.

O livro que celebrizara Sue Townsend merecia ser lido, garantia Tereza Coelho, “por adolescentes e pós-adolescentes de todas as idades”.

Clara Ferreira Alves, que já o incluíra em 1984 numa breve lista de livros de bolso ingleses e franceses a ler nas férias de Verão desse ano, comparou-o mesmo ao mítico The Catcher in the Rye [traduzido em Portugal como Uma Agulha no Palheiro e À Espera no Centeio] e considerou que, dois anos após ter sido escrito, era já “um clássico tão apetitoso e irresistível como um chocolate Mars, a guloseima predilecta de Adrian”.

Ambas as críticas sublinharam também o modo como Townsend retratava, através deste seu inesperado alter-ego masculino e adolescente, a Inglaterra governada por Margaret Thatcher. “Pano de fundo deste espantoso relato é a Grã-Bretanha “thatcherizada” com três milhões de desempregados (incluindo o pai de Adrian), a classe média proletarizada partilhando copos e vizinhanças com as etnias sobrantes do Império, o culto obsessivo e generoso da família real (…)”, escreve Clara Ferreira Alves.

A Difel publicou, depois, a par de outros romances de Townsend, os sucessivos volumes da série Adrian Mole: Adrian Mole na Crise da Adolescência (edição original, 1984), As Confissões de Adrian Mole & Ca. (1989), Os Anos Amargos de Adrian Mole (1993), Adrian Mole: Na Idade do Cappuccino (1999), Adrian Mole e as Armas de Destruição Maciça (2004) e Os Diários Perdido de Adrian Mole (2008) Com o fim da Difel, em 2011, a autora tem sido publicada pela Presença, que está a reeditar os livros de Adrian Mole. Só o último volume da série Adrian Mole: The Prostrate Years (2009), não foi ainda publicado em Portugal.

 

 

 

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