Quando o provincianismo nacional vai à caça aos gambozinos

O cinema torna-se uma questão de turismo ou é assim que sonham os cinéfilos que nos governam.

"The two biggest myths about me are that I’m an intellectual, because I wear these glasses, and that I’m an artist because my films lose money. Those two myths have been prevalent for many years." Woody avisa: ele, o homem de óculos e dos filmes que perdem dinheiro, é uma criatura mítica: o gambozino. E o provincianismo nacional de mais alto nível, o do Município e o do Estado central, anda à caça. É a pantomima da não-notícia, coisa tchekhoviana, e atrai agentes vários: andar atrás de Woody Allen para ele filmar em Lisboa. Sim, há cerca de um ano, foi "revelado" nesta terça-feira, o então ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas, aproveitando uma estadia em Nova Iorque em visita oficial às Nações Unidas, encontrou-se com a equipa de Woody Allen para "abrir uma primeira porta" na potencial relação da capital com o realizador norte-americano. E parece que não há mais nada para dizer... Nós, jornalistas, estamos incluídos nessa dança – ou então a "não-notícia" seria apenas "não..." e convém participar, não vá o tal filme fazer-se um dia...

Não é de desprezar que a perda de autoestima que nos faz sofrer seja responsável pelo triste esbracejar sobre o vazio de comunicados que morrem na praia, cansados com tanta(s) generalidade(s), e ainda assim reproduzidos. Mas logo agora que a crise devia estar a acabar, precisamos tanto que Allen inunde os cofres com (o nosso ou o deles?) orgulho patriótico? Não virá esse tal filme tarde demais?

O que é que Londres (Scoop, Match Point), Barcelona (Vicky Cristina Barcelona), Paris (Meia-Noite em Paris) ou Roma (Para Roma com Amor) ganharam com Woody Allen? É uma questão para o turismo das cidades responderem. E o cinema torna-se uma questão de turismo ou é assim que sonham os cinéfilos que nos governam, levando Sharon Stone ao Douro ou imaginando, de forma autárquica e perante a televisão, homenagens a Manoel de Oliveira, na Avenida dos Aliados, no Porto, apadrinhadas por Eastwood, Spielberg e Scorsese, nem mais...

Para voltar ao cinema e a Woody Allen: o que ganhámos com a tour europeia? Com excepção da escorregadela moral dada em Match Point, o filme que nos fez sonhar que ele se estava a levantar de uma queda (Hollywood Ending, Anything Else, Melinda e Melinda foram os títulos imediatamente anteriores, isto só para lembrar...), o sistema afectivo de muitos de nós, nostálgicos, permanece acabrunhado. (É compreensível que o Ministério dos Negócios Estrangeiros tenha levado isto tão a peito há um ano: Allen corresponde a uma espécie de "bom gosto" instituído, rosebud de uma geração, alguém lá pelo governo é cinéfilo). Mas quem se mete com Allen, parece ser essa a moral do périplo de Woody pelas cidades, entra num labirinto deceptivo.

O angustiante Blue Jasmine, filme na América, surpreende por ser espesso, por ser uma terra movediça onde se afunda Cate Blanchett, que puxa para baixo, levando com ela todo um filme e assim erguendo o cinema? Sim, Blue Jasmine é assim. Mas não fiando. A experiência com Allen, hoje, é coisa vacilante: ele instalou-se num "cinema de velho" (isto pode não ser necessariamente um insulto, pode ser até um elogio), teimosamente sem curiosidade pelo outro, aproveitando egoisticamente a mão que lhe dá de comer e que cobra mais barato do que na América. Isto para avisar que se calhar, quando surgir o tal filme de Woody Allen sobre Lisboa, reencontraremos uma fadista de caricatura como a de A Gaiola Dourada – mas se já existe uma...? –, Joaquim de Almeida talvez faça em Lisboa o que Banderas e Benigni fizeram em Barcelona e Roma, e o genérico pode contemplar uma marcha popular.

E se...? What if nothing exists and we’re all in somebody’s dream? Or what’s worse, what if only that fat guy in the third row exists?
 
 

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