Patrice Chéreau, homem total no teatro e íntimo no cinema

Encenador, realizador e actor francês tinha 68 anos e uma carreira de mais de 40 dividida entre o teatro, a ópera e o cinema. Morreu segunda-feira em Paris.

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O realizador e encenador em 2006 Pedro Armestre/AFP

Sabíamo-lo doente, mas os planos que mantinha, no cinema e no teatro, pareciam indicar que o encenador francês Patrice Chéreau, que morreu nesta segunda-feira aos 68 anos, em Paris, iria vencer a batalha contra o cancro no pulmão que o assomava há dois anos.

A notícia foi avançada pelo jornal Libération esta segunda-feira ao fim do dia e confirmada mais tarde pela Cinemateca Francesa. Patrice Chéreau, actor, encenador e realizador deixa uma obra que se define pelo desejo. Desejo de se exibir, barroca que era na sua construção. Desejo de existir, pelo modo como procurava inscrever-se, ao longo do tempo, através das referências que as personagens usavam como argumento retórico.

Em 2008, quando recebeu o Prémio Europa para o Teatro, Chéreau, na vaidade de quem não fugia da glorificação, definia o seu teatro, o seu cinema, as suas encenações para ópera como um contínuo discurso de descoberta.

Desde sempre curioso, foi autor de mais de uma centena de encenações e de quase 20 filmes. A sua carreira estendeu-se ao longo de mais de 40 anos.

A sua primeira encenação, aos 19 anos, L'Intervention, a partir de Victor Hugo, abriu-lhe as portas do teatro de Sartrouville, onde viria a protagonizar, a partir de 1959, uma verdadeira revolução no teatro francês, onde as tomadas de posição públicas sobre a política nunca procuraram o consenso.

Deve-se a Chéreau a descoberta do teatro de Bernard Marie-Koltés, autor que encenou como se fossem suas as palavras. Na Solidão dos Campos de Algodão, que em 1995 se apresentou no na Alfandega do Porto pelo Teatro Nacional São João, é uma das suas mais famosas encenações, precisamente por experimentar um modo de pensar o jogo entre actores como um jogo.

Mais tarde, à frente do Theatre National Populaire, seguindo os passos de Jean Vilar, e depois em Amandiers-Nanterre, na periferia de Paris, Chéreau procurou construir um teatro que se implicava com a memória, de modo a que pudesse contrariar a efemeridade que tanto o incomodava.

Ficarão na memória, por isso mesmo, encenações como a que assinou em 1976 da tetralogia O Anel do Nibelungo, de Wagner, cuja direcção musical havia sido entregue a Pierre Boulez, criada para o centenário do Festival de Bayreuth. Em 1980, na conclusão da obra, o público, céptico inicialmente, rendia-se a uma visão que se tornaria, senão definitiva, difícil, pelo menos, de superar.

O teatro de Chéreau era feito de um excesso que, contudo, nunca se impunha pela sua força física, antes pela demonstração de uma atenção particular a um modo de pensar o palco como lugar de confronto.

Já havia sido assim em 1970 com Ricardo II, de que se imporia como uma peça de viragem na abordagem a Shakespeare, depois em 1983 com Combate de cães e negros, de Koltés, e mais recentemente, quando Chéreau descobriu o teatro do norueguês Jon Fosse – Sonho de Outuno (2011) e Sou o vento (2012, que esteve no Festival de Teatro de Almada nesse ano), comparando-o a esses autores.

Cinema da intimidade
Também no cinema se impunha um olhar que dificilmente procurava um consenso. L’Homme Blessé, que escreveria com Hervé Guibert (1983), assumia a sua condição de homossexual num texto que expunha, sem pudor, o amargo fel do vírus da sida num conto, quase fábula, sobre uma Paris quase nada secreta. Muito do seu cinema recusava o filtro da metáfora para se expor, sem concessões, a um olhar que denunciava a fragilidade do ser humano. Em A Rainha Margot (1994, Prémio do Júri do Festival de Cannes), rodado parcialmente em Portugal, as guerras dos Médicis eram vistas como uma condição sine qua non da existência. Expostas, aliás, e como espelho, em Quem me amar irá de comboio (1996), denúncia sobre a falência dos laços familiars. E, no entanto, nunca o seu cinema deixou de ser sobre o íntimo. Filmes como Intimidade (2001, Urso de Ouro do Festival de Berlim), O seu irmão (2003, Urso de Prata em Berlim), Gabrielle (2005), não eram, senão, e de certo modo, recomposições dos jogos entre o comprador e o vendedor que estavam na base de Na Solidão dos Campos de Algodão, de Koltés.

Em Julho passado, no festival de Avignon, a sua leitura de Coma, de Pierre Guyotat, havia emocionado o público. De certo modo, em retrospectiva, o adeus de um homem a um corpo que já não lhe obedecia surge agora como premonitório. Ao mesmo tempo, e era esse paradoxo que Chéreau tão bem sabia habitar, a 50 quilómetros, em Aix-en-Provence, a sua encenação da ópera Elektra, de Strauss, mostrava como era ainda possível esperar deste homem uma ideia de teatro total.

Chéreau tinha projectos no teatro e no cinema. Em Janeiro de 2014 o teatro Ódeon, em Paris, previa apresentar Como vos aprouver, de Shakespeare, e preparava, para o cinema, uma adaptação do romance Des Hommes, de Laurent Mauvignier, sobre a guerra na Argélia.

Em 2011 a Sociedade Portuguesa de Autores prestou-lhe homenagem com um Prémio Carreira. Em 2006 Chérau esteve em Lisboa para ler O Grande Inquisidor, excerto de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievsky e, em 2010, com A Dor, de Marguerite Duras, apresentou-se no Teatro Nacional Dona Maria II.

Notícia corrigida às 16h03: Na Solidão dos Campos de Algodão foi apresentada na Alfândega do Porto

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