O que o cinema deve à literatura numa escolha de Pedro Mexia

Revista Ler comemora 25 anos com um ciclo de 25 filmes que adaptam livros ou abordam a criação literária - de 4 a 9 de Dezembro, S. Jorge, Lisboa. Na programação, concertos de bandas de escritores.

Foto
O Leopardo: um exemplo de como não é impossível um grande livro resultar num grande filme DR

A antestreia de Pela Estrada Fora, a adaptação do brasileiro Walter Salles do romance autobiográfico de Jack Kerouac, dá início, dia 4 de Dezembro, no Cinema S. Jorge, em Lisboa, ao Festival Ler 25 Anos/25 Filmes. Destinado a comemorar um quarto de século de existência da revista, prolonga-se até dia 9 e propõe-se exibir 25 obras cinematográficas nas quais a literatura é uma presença forte.

A direcção da Ler é responsável pela escolha do filme de Salles, mas confiou a selecção dos restantes 24 ao crítico literário e ex-subdirector e director interino da Cinemateca, Pedro Mexia, cuja lista abarca 60 anos de cinema, de Matar ou Não Matar, que Nicholas Ray realizou em 1950, e que para alguns é a sua obra-prima, ao muito aclamado Poesia (2010), de Lee Chang-dong. Bastam estes dois exemplos para se tornar claro que Mexia optou por considerar os vários modos pelos quais o cinema pode relacionar-se com a literatura, escolhendo filmes inspirados em livros, como o de Ray, que se baseia num romance de Dorothy B. Hughes - autora de quem a colecção policial XIS, da Minerva, publicou vários títulos nos anos 50 -, mas também filmes nos quais a literatura é um tópico central, como acontece no de Lee Chang-dong, cuja protagonista é uma avó que, confrontada com problemas familiares e sofrendo os primeiros sintomas de Alzheimer, frequenta um curso de poesia.

A programação, que ocupará as várias salas do S. Jorge durante uma semana, incluirá ainda, entre outras actividades, concertos das bandas dos escritores Afonso Cruz (The Soaked Lamb) ou Jacinto Lucas Pires (Os Quais), um espectáculo de David Santos, cuja música tem conexões intensas com a literatura, uma conversa ao vivo com o romancista António Lobo Antunes, conduzida por Carlos Vaz Marques, e uma conferência de Gonçalo M. Tavares com a participação especial da fadista Aldina Duarte.

Mas o cinema é o núcleo mais ambicioso, e também em termos organizativos, já que não terá sido fácil agendar 25 sessões para seis dias num espaço que irá acolher outras actividades. Depois de Matar ou Não Matar, com Humphrey Bogart no papel de um argumentista, Mexia propõe um clássico de Alfred Hitchcock, O Desconhecido do Norte-Expresso (1951), baseado na notável obra de estreia de Patricia Highsmith. Seguem-se dois filmes de 1958: O Americano Tranquilo, de Joseph Mankiewicz, baseado em Graham Greene, e o notável Deus Sabe Quanto Amei, de Vincente Minneli, adaptação de um romance de James Jones, um autor cujos livros tendem a resultar em filmes com notoriedade, como aconteceu com Até à Eternidade, adaptado por Fred Zinnemann em 1953, e The Thin Red Line, que, após uma primeira adaptação em 1964, por Andrew Marton, inspirou A Barreira Invisível (1998) de Terrence Malick. 

Escolhas óbvias e esquivas
Os anos 60 abrem com Viridiana (1961), de Luis Buñuel, cujo argumento se inspira livremente num romance (Halma) de Pérez Galdós. Segue-se a adaptação de Luchino Visconti da obra-prima de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo (1963) - um desses filmes geralmente evocados - tal como, aliás, outro Visconti: Morte em Veneza, baseado na novela de Thomas Mann - como exemplos de que não é impossível um grande livro resultar num grande filme. E Fogo Fátuo (1963), de Louis Malle, baseado num romance de Drieu de la Rochelle, que, por sua vez, se inspirou nos últimos dias de vida do poeta surrealista Jacques Rigaut, que se suicidou aos 31 anos. O filme seguinte, de 1964, também é baseado num livro, e de um escritor de mérito indisputado, mas cuja identidade permanece objecto de polémica: o Evangelho segundo S. Mateus, que inspirou aquele que talvez seja, no plano visual, o filme mais impressionante de Pier Paolo Pasolini.

O cinema português entra na lista com Uma Abelha na Chuva (1971), de Fernando Lopes, adaptado do romance de Carlos de Oliveira, e será ainda representado por O Dia do Desespero (1992) - a agonia de Camilo vista por Manoel de Oliveira - e por A Corte do Norte (2008), de João Botelho, inspirado no livro de Agustina Bessa-Luís.

Dos restantes filmes, a maior parte é baseada livremente em obras de escritores: Effie Briest (1974), de R. W. Fassbinder (Theodor Fontane), A Marquesa d'O (1976), de Eric Rohmer (Heinrich von Kleist), Tess (1979), de Roman Polanski (Thomas Hardy), Gente de Dublin (1987), de John Huston (James Joyce), Vidas em Fúria (1987), de Stephen Frears, baseado na biografia do dramaturgo Joe Orton escrita por John Lahr, A Morte de Empedócles (1987), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub (Hölderlin), ou Os Americanos (1993), de Robert Altman, que adapta uma série de short stories do norte-americano Raymond Carver.

Outros não são baseados em livros, mas têm escritores, reais ou fictícios, como protagonistas: o poeta russo de Nostalgia (1983), de Tarkovski, o escritor que aceita uma encomenda de Hollywood em Barton Fink (1991), de Joel Coen, ou o dramaturgo de Balas sobre a Broadway (1994), de Woody Allen, forçado a empregar como actriz a amante de um mafioso. Já Estádio de Wimbledon (1994), de Mathieu Amalric, obedece a ambos os critérios: baseia-se num romance do italiano Daniele del Giudice cujo protagonista é um escritor sem nada publicado.

Não menos pertinente, mas mais oblíqua (para se evitar o jogo de palavras com o título do filme) é a escolha de A Esquiva (2004), de Abdelattif Kechiche, no qual um grupo de adolescentes dos subúrbios pobres de Paris encena na escola uma peça do dramaturgo setecentista francês Pierre de Marivaux.
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar