“A cultura de limpeza social ainda é fortíssima no Brasil”

Ao longo de décadas, o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, tratou doentes como animais. Este hospício era como “um campo de concentração nazi”, denunciaram médicos nos anos 1980. Mais de 30 anos depois, a jornalista Daniela Arbex foi à procura dos sobreviventes para lhes dar voz.

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A jornalista brasileira Daniela Arbex Nuno Ferreira Santos
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Foto que Luiz Alfredo tirou em 1961 quando visitou o Hospital Colônia de Barbacena Luiz Alfredo
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Capa da revista O Cruzeiro com a reportagem de Luiz Alfredo Luiz Alfredo
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Foto que Luiz Alfredo tirou em 1961 quando visitou o Hospital Colônia de Barbacena Luiz Alfredo
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Foto que Luiz Alfredo tirou em 1961 quando visitou o Hospital Colônia de Barbacena Luiz Alfredo

Quando entravam no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, os pacientes eram despidos da sua capa de pessoas, tiravam-lhes os nomes, cortavam-lhes os cabelos, passavam a ser animais.

Não ficavam apenas nus fisicamente, como vemos nas fotografias e “ouvimos” nos relatos dos sobreviventes no livro Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, editado em Portugal pela Guerra & Paz: uma mãe que se barra com fezes para proteger o filho que traz na barriga, pessoas a beber água do esgoto e a comerem ratos, corpos de doentes deitados em palha e cobertos de moscas, uma multidão nua, no terraço, mulheres mantidas em celas como aves…

Há várias cenas relatadas no livro que impressionam, e remetem para a ideia de genocídio. Passando em revista as imagens de época do fotógrafo Luiz Alfredo, que em 1961 foi dos primeiros a testemunhar o “campo de concentração nazi” em que se transformou o maior hospício no Brasil, como foi descrito, fica a pergunta imediata: como foi possível?

Segundo as estimativas, houve 60 mil mortes às mãos deste hospício, e a maioria dos internados nem sequer tinha diagnóstico de doença mental, eram deserdados sociais: prostitutas, homossexuais, epilépticos… Durante onze anos, 1853 corpos de pacientes foram vendidos a 17 faculdades de medicina, e pelo menos 30 bebés foram roubados às suas mães, relata Daniela Arbex no livro.

Fundado em 1903, transformado em Centro Hospital Psiquiátrico em 1980, o hospício de Colônia e o que lá se passava foi denunciado várias vezes ao longo dos anos: pelas reportagens de Luiz Alfredo em 1961, e de Hiram Firmino e Jane Faria em 1979, pelo documentário de Helvécio Ratton no mesmo ano, pelas tomadas de posição públicas do psiquiatra italiano Franco Basaglia em 1979, dos psiquiatras brasileiros Francisco Paes Barreto (em 1966 e 1972) e Ronaldo Simões Coelho (em 1972)…

Mas Daniela Arbex, a autora e jornalista que fez a investigação para o jornal Tribuna de Minas, decidiu ouvir os sobreviventes e dar-lhes voz, e isso é o que distingue este trabalho das denúncias anteriores, considera a própria. A jornalista tem viajado por vários países para falar do seu trabalho, incluindo congressos de saúde mental. A série de 2012 que deu origem ao livro publicado em Junho de 2013 valeu-lhe várias distinções, como o prémio Esso 2012. O impacto no Brasil foi “imenso”, diz num hotel em Lisboa esta mulher que se emociona a falar do livro e das personagens que entrevistou e que no final nos pergunta se as respostas que deu “estavam bem”.

Tudo começou em 2009 quando viu pela primeira vez as fotos de Luiz Alfredo num livro editado por essa altura. “Fiquei completamente chocada: ‘meu Deus, o que é que é isso, que história é essa?’”

Durante dois anos tentou convencer o jornal a fazer “a matéria”, até que em 2011 sugeriu procurar os mesmos sobreviventes 50 anos depois e entrevistá-los. Tinha acabado de regressar de licença de maternidade e ainda estava a amamentar o filho, algo “emocionalmente muito difícil”, porque “saía de casa e me sentia a pior das mães”. Depois, quando a série de reportagens saiu “foi realmente avassalador”. Decidiu então escrever o livro, que já vendeu 60 mil exemplares, e foi, segundo diz, adoptado por faculdades, e escolas secundárias. Depois da sua publicação, o estado “injectou 10 milhões de reais no hospital”.

Depois da leitura do seu livro há uma pergunta que não nos larga: nunca se apurou a responsabilidade pelas mortes dessas pessoas e pela forma como foram tratadas?
É muito difícil pensar numa responsabilização individual, porque foi um crime cometido durante oito décadas. Em oito décadas passaram [por lá] centenas de funcionários, de médicos, [houve] 28 governantes na presidência do Brasil. Quem responsabilizar? Isso é também fruto de uma omissão colectiva da sociedade brasileira, não adianta falar só dos governos.

O maior responsável é o governo brasileiro porque tinha a custódia dessas pessoas, a responsabilidade de tutorar e oferecer atendimento digno. O governo falhou gravemente, mas a sociedade também: as famílias que deixaram os filhos, os parentes e nunca mais voltaram, os médicos que trabalharam lá e viram isso e não conseguiram fazer alguma coisa, os próprios funcionários, os próprios moradores de Barbacena que conviviam com o hospício. As pessoas diziam, e acredito: ‘a gente não sabia o tamanho da tragédia’. Muitas pessoas que entrevistei, no começo, se colocavam na defensiva, e no final da entrevista, mais relaxadas, percebiam que podiam ter feito alguma coisa - isso aconteceu em quase todas as entrevistas, era quase uma confissão.

Havia uma tomada de consciência com as perguntas que fazia?
Exactamente, era uma tomada de consciência, e não foi da noite para o dia porque eu entrevistei mais do que uma vez a maioria das pessoas. Fiz um primeiro contacto, houve muita resistência de algumas pessoas, voltei de novo – às vezes entrevistava umas cinco vezes e só na quinta vez é que a pessoa se abria e tomava consciência de que fazia parte daquilo, directa ou indirectamente.

Está a falar de pessoas que tinham responsabilidade?
Quando escrevi o livro não tive a intenção de promover uma responsabilização, de colocar o estado em tribunal. A minha intenção foi tornar essa história conhecida para o maior número de pessoas. Quando tomei conhecimento dessa tragédia, e percebi que a minha geração não sabia dessa história, disse que precisava de fazer alguma coisa para que as pessoas conhecessem, para que o meu filho quando tivesse 20 anos soubesse que o Brasil viveu um Holocausto. O Brasil não conhecia essa história. O meu pai tem 86 anos e disse: ‘a gente ouvia falar mas…’ Os moradores de Barbacena falaram: ‘a gente não sabia a extensão, dimensão profundidade’.

Tive o privilégio de poder contar essa história depois que ela aconteceu. Porque as pessoas que a contaram antes foi num momento de denúncia, muito imediato - a denúncia era feita e passado um tempo era esquecida. E na verdade o grande diferencial do ‘Holocausto Brasileiro’ é que pela primeira vez os sobreviventes tiveram voz. Essa não é uma história inédita, não fui eu que descobri essa tragédia, mas fui a primeira pessoa que procurei os sobreviventes e quis saber o que se passou com eles.

É difícil responsabilizar alguém individualmente, diz, mas o Estado brasileiro poderia dar uma indemnização, alguma compensação – os sobreviventes querem algum ajuste de contas?
A história deles é uma lição de vida. São pessoas que tiveram a sua humanidade confiscada, que passaram por todo o tipo de violação. Isso é, inegavelmente, um crime contra a humanidade. Mas as pessoas que foram vítimas só querem reconstruir as suas histórias. É impressionante a capacidade que o ser humano demonstra de se superar. De pouquíssimas pessoas eu senti a [necessidade de ajuste de contas].

Inegavelmente o Estado brasileiro é responsável e está sendo responsabilizado pelas famílias. O livro acabou gerando umas centenas de acções à justiça pela parte das famílias que tiveram parentes lá e também uma movimentação do judiciário e do ministério público para que sejam apuradas as responsabilidades. Posso estar enganada, mas não creio que as responsabilidades individuais venham a ser apuradas; é um facto que moralmente o governo, o Estado brasileiro está comprometido.

Alguém foi indemnizado?
Ainda não. Tanto que isso está gerando um movimento de blindagem do hospital. Nada declarado, mas as pessoas não conseguem ter acesso como antes, [incluindo] eu mesma. Só que é um movimento sem volta. O Holocausto ganhou o Brasil, e espero que ganhe o mundo, porque essa história precisa de ser conhecida – não podemos repetir esses erros e temos que formar uma nova consciência. Essa é uma história que faz a gente pensar em como a omissão gera a barbárie. Se você finge que não vê, e a gente finge que não vê todos os dias, está contribuindo para a barbárie. A violência, a cultura de limpeza social ainda é fortíssima no Brasil: tirar das ruas tudo o que incomoda, que considera escória, que não considera gente. Um assassinato de uma criança pobre não comove o Brasil, mas o Brasil pára com o assassinato de uma criança da classe média-alta. A ideia de que tem vidas que valem mais que as outras é muito forte no Brasil. O que sustentou a existência desse hospital por oito décadas foi essa cultura, essa indiferença.

Há algumas testemunhas que entrevista no livro que têm noção do que se passou – elas na altura tinham consciência da enormidade da situação?
Não. Quando falo do privilégio de contar essa história é como se tivesse estado no futuro a olhar para o passado. Cinquenta anos depois, tive condições de ver o tamanho da tragédia e as pessoas que viveram isso não a tiveram. Algumas pessoas não toleraram viver com isso, como a enfermeirinha [Maria Auxiliador] que deixou o hospital, o Luiz Alfredo que fez as imagens que sustentam o meu livro – se elas não existissem, o meu livro não existia. Primeiro porque fui investigar a partir das imagens dele, porque se alguém me tivesse contado eu talvez não acreditasse. Ninguém acreditaria nos depoimentos se a gente não visse essas fotos.

Mas acho que elas não tinham essa noção do tamanho da tragédia. Algumas se incomodaram e começaram a denunciar, e foram responsabilizadas por isso. Francisco de Paes Barreto, médico importante de Minas Gerais, foi processado no Conselho Geral de Medicina porque ousou denunciar. Outros foram perseguidos. O Ronaldo Simões perdeu o emprego. Houve muitas censuras também.

Por causa da ditadura, da cultura de silenciamento?
Não. Acho que a ditadura só agravou o problema. Porque durante 18 anos, de 1961 a 1979, o hospital foi completamente blindado, ninguém entrou no hospital. Isso era um silenciamento da ditadura, mas esse silenciamento já existia antes porque as pessoas viam e fingiam que não viam. Todas as vezes que essa história veio à tona em épocas diferentes ela causou um estarrecimento por dias, semanas, depois as pessoas esqueciam. Eu escrevi essa história para que não se esqueça. Não estou falando pelo número de mortos, que é uma estimativa do hospital e do governo do Estado, que em 2008 admitiu o número de 60 mil mortos: o que aconteceu lá supera qualquer número.

Quando é que acaba na verdade este período de genocídio?
Não há um período. Mas em 1979 com as denúncias e a mobilização da classe médica e dos profissionais da saúde mental houve o início da reforma psiquiátrica brasileira. As coisas começaram a mudar: o hospital passou a ter mais médicos, mudou a direcção com uma visão humanizada. Em 1986 a situação começa a normalizar. O Jairo Toledo conseguiu fazer muita coisa. Mas de 1979 a 1994 há uma janela de 15 anos e mesmo assim ainda tinha pessoas presas nas celas. É muito recente, isso é que choca. Entendo que a cultura da época era do isolamento, confinar, mas nunca vou entender todas as violações cometidas em nome dessa teoria.

Das conversas que foi tendo, das reflexões que foi fazendo, como é que explica o que aconteceu?
Isso era a grande pergunta que me incomodava e fazia para todo o mundo: porquê e de quem era a culpa? Comecei esse trabalho achando que ia encontrar de quem era a culpa. Aí a funcionária Chiquinha falou: ‘a culpa é nossa, de toda a sociedade, é uma omissão colectiva’. Foi a primeira vez que pensei nisso. Levei um choque: ‘Gente, ela está certa’. Porque ninguém foi para lá sozinho, as pessoas conviviam dentro do hospício. Acho que houve uma omissão muito grande do Estado. Não acredito que a intenção inicial do Estado era transformar o Colônia no que se transformou. Só que eu encontrei documentos de 1914 que já falavam em sobrelotação [em 1960 havia 5 mil pacientes para uma unidade projectada para 200, relata no livro]. Mesmo com todos os alertas. Nenhum governante brasileiro pode dizer que não sabia, nenhum. Porque há documentos, trocas de informação, entrevistas de governantes falando que vão fazer. Acho que o documento mais grave que consegui é um documento de 1959, do chefe de departamento do governo do Estado, que sugere que os hospitais psiquiátricos adoptem o modelo de Colônia e que é substituir as camas por capim para caberem mais infelizes. 

Como encontrou as pessoas?
Isso foi muito bacana. Não tinha ideia se elas estavam vivas. Só tinha as fotos. Fui para Barbacena com as fotos e perguntando a todas as pessoas se elas reconheciam alguns daqueles rostos. Com ajuda de funcionários e ex-funcionários do hospital fomos achando um a um. Num primeiro momento a gente achou 20 sobreviventes. E cada encontro para mim era uma emoção. Você acredita que eu só achei que isso era verdade quando encontrei o primeiro sobrevivente, o Machadinho? Porque achava que aquilo não era possível. Foi muito emocionante, esse livro me virou do avesso.

Foi um caso único no Brasil, com esta dimensão?

Acho que tem várias formas de extermínio no Brasil. Todos os dias a gente tem um caso. Mas com esta dimensão creio que é o único. Se conseguisse somar as mortes de todos os doentes psiquiátricos do Brasil, teria um número muito mais impressionante. As condições dos hospitais psiquiátricos brasileiros estão muito aquém do que deveriam estar, mesmo com a reforma que começou em 1979. Em 2001 o governo aprovou a lei de atenção ao portador de transtorno mental que já foi um outro avanço – a lei fala na humanização do atendimento, na extinção dos manicómios, e na garantia de um atendimento sem essa cultura de isolamento.

Em 2004 foi feita uma investigação nos hospitais brasileiros e encontraram grades, celas, algemas, camisas de força em vários hospitais. De 2003 a 2013 fiz várias matérias denunciado hospitais, ‘fechámos’ quatro hospitais psiquiátricos na minha cidade. Estou querendo dizer que isso não é coisa do passado, é coisa de agora. A violação é a mesma: você confisca a humanidade da pessoa e o direito de ela viver com dignidade.

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