A morte é um desassossego

Don DeLillo escreve um romance de morte para explorar e questionar as possibilidades da vida, individual ou a colectiva, da determinação divina à escolha humana. Tão próximo da ficção científica como devolvendo-nos ao quotidiano mais banal.

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Estamos perante um romance onde Don DeLillo problematiza a morte — e necessariamente a vida — nas suas múltiplas dimensões LOIC VENANCE/afp

Já bem perto do fim de Zero K, uma personagem cita Santo Agostinho: “Nunca, na verdade, haverá para o homem pior desgraça na morte do que chegar onde a própria morte não será morte.” A frase soa a provocação ou desafio num romance onde Don DeLillo (Nova Iorque, 1936) cria um universo sustentado na ideia de que o ser humano pode escolher interromper a vida — morrer — para voltar a ela numa dimensão futura — ressuscitar? — através de um processo de preservação do corpo por criogenia. É o pressuposto contrário ao de Santo Agostinho. A ideia de partida do mais recente livro de DeLillo não é a aceitação do fim concebido por um ente divino, mas o sonho humano de eternidade, ou como o escritor o verbaliza na frase de arranque do livro: “Todos queremos ser donos do fim do mundo”, palavras que soam como um permanente eco nas consciências que atravessam Zero K, seja das personagens ou dos leitores.

Estamos perante um romance onde o escritor problematiza a morte — e necessariamente a vida — nas suas múltiplas dimensões: divina, metafísica, científica, humana e, aqui, racional e emocional, de entendimento de fim ou enquanto percepção de fim de ciclo e início de outro, de fé no divino ou fé na tecnologia, a “tecnologia assente na fé”, como refere Ross Lockhart, o milionário, coleccionador de arte, pai de Jeff, o narrador, em vésperas de se despedir da sua segunda mulher, a bela Artis, antropóloga, o corpo diminuído pela esclerose múltipla. Ela é uma das pacientes de um centro chamado Convergência situado num território inóspito onde a cidade mais próxima é Bishkek, a capital do Quirguistão. É um território asséptico onde a tecnologia ocupa o lugar de deus premiando os seis “fiéis” com a “vida depois da morte.” Em resposta ao enteado, que lhe pergunta como se sente antes de ser submetida à suspensão criogénica, responde: “Sinto-me artificialmente eu própria. Sou uma pessoa que deveria ser eu.”  

Jeff tem 34 anos, uma profissão tão volátil quanto a sua existência meio vazia depois da morte da mãe, Madeleine, de quem o pai mal se lembra desde que saiu de casa tinha ele 13 anos. A frase de Artis não lhe sai da cabeça. Ele é aqui um quase espectador convocado para também se despedir de Artis e colocado perante questões essenciais, de identidade ou de tempo e do papel de cada indivíduo no que se entende ser o universo e as suas grandes ameaças. Ele paira entre o real e uma dimensão suspensa onde parece situar-se o futuro, ouvinte de vozes, proféticas, quase evangelizadoras, alertas ditas a pessoas que vão ali morrer à espera de voltar um dia a um planeta que tem graves dilemas presentes. “Muitas vezes, as esperanças e os sonhos acerca do futuro não chegam para dar conta da complexidade, da realidade da vida como ela existe neste planeta. Nós damo-nos conta disso. Os famintos, os sem-abrigo, os acossados, as facções e as religiões e as seitas e as nações que se digladiam. As economias arrasadas. Os sobressaltos tresloucados do clima. Será que conseguiremos manter-nos a salvo do terrorismo? Será que conseguiremos afastar a ameaça dos ciberataques? Será que iremos conseguir manter-nos verdadeiramente autossuficientes neste lugar?”

É o futuro do indivíduo e o futuro colectivo com DeLillo a colocar o homem como dono ou determinante do destino de um e de outro. Se eu posso decidir não morrer suspendendo a minha vida, que planeta vou encontrar à frente. Ross surge como o grande interpelador ou provocador, quando diz ao filho que vai acompanhar a mulher apesar de o seu corpo não estar doente. “Eu vou com ela”, porque não quer viver sem ela. “Crime?” É outro grande activador de consciência, o dilema da escolha individual na sua solidão, a par do desafio/pedido Artis a Jeff, “vem connosco”.   

Zero K é o grande livro de questionamento acerca da morte, no momento em que Don DeLillo acaba de completar 80 anos, onde se permite mergulhar num imaginário próximo da ficção científica, para voltar à superfície, ou à narrativa do real de que é um dos mais brilhantes nomes. Temos a desumanização e o regresso ao mais emotivo e banal do ser humano. Quando o romance parece estar numa espécie de território branco, independente, onde o homem se permite todas as questões fora do ambiente real, numa redoma científica, ele devolve-nos à humanidade do dia-a-dia, no caso ao quotidiano nova-iorquino. É aí que DeLillo se revela um dos mais brilhantes narradores, capaz de captar e de devolver em frases aparentemente simples e de uma extrema acutilância o que é estar vivo no presente e em permanente desassossego. “O tempo é múltiplo, o tempo é simultâneo. Este momento acontece, aconteceu, vai acontecer”, dirá uma personagem que interpela acerca do papel da língua para entender o que aí vem, o que se pode passar noutra dimensão como a da Convergência. O que temos é o banal do quotidiano e a exploração de todas as possibilidades de se ser humano, seja enquanto partícula ínfima do universo, seja como o seu grande modelo de criação. 

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