Quando os comboios levavam cartas e o escritório era na areia

Durante os nove anos em que presidiu a Ordem dos Médicos, as férias eram o trabalho levado para a praia. Areia nos pés e os miúdos pelas mãos do homem para quem o trabalho não podia ficar à espera, “só porque estava de férias”.

Fotogaleria
Com a família no Algarve DR
Fotogaleria
A casa em Alvor,Algarve, onde Gentil Martins passava férias DR
Fotogaleria
Enquanto presidente da Ordem dos Médicos, António Gentil Martins entendia que nenhuma carta devia ficar sem resposta Rui Gaudêncio

Ia buscar uma pasta com cartas ao comboio da manhã, que parava em Portimão. À noite devolvia-a na mesma carruagem, mas os envelopes já tinham o volume das respostas que lera para o gravador, dentro de uma barraca às riscas, na praia do Alvor. António Gentil Martins conhece quase todo o mundo. Correu-o nos quatro anos em que foi presidente da Associação Médica Mundial, mas nunca passou a fronteira para estender as férias ao sol. Verões, passou-os todos com a família, abrigado na tal barraca, tantas vezes com o trabalho sobre as pernas.

Durante boa parte dos seus 64 anos de carreira, as férias significavam mudar o cenário de fundo para o caderno, o gravador ou (mais tarde) o computador sobre o qual trabalhava. Falar de férias é falar de trabalho. “É assim em muita coisa da minha vida, o trabalho está sempre presente.”

Raras vezes existiu um Gentil Martins não-médico. Nem o areal, nem o mar do Alvor, que lhe “enchiam o coração”, travavam o ritmo dos comboios que chegavam com os papéis, todos os dias.

Estoril com os Quinas

Há o antes e o depois da medicina. Quando era adolescente, ia passar as férias no Estoril, onde havia uma avenida com o nome do seu pai, António Martins. “Os meus primos, os Quinas, viviam lá. O pai deles era pediatra, foi meu padrinho. Eles viviam lá e, portanto, nós — eu e os meus irmãos — íamos reunir-nos com os nossos primos e passávamos ali o Verão. Parecíamos um grande grupo de amigos.”

Iam para a praia de manhã e à noite, muitas vezes, ao Casino Estoril. Foi aí que o então “miúdo da cidade” aprendeu a jogar ténis, a nadar, a andar de bicicleta. Ia de bicicleta até ao Guincho vezes sem conta.

Até que a universidade começou e as férias deixaram de ser períodos tão longos e “com coisas tão novas”. O último Verão de três meses foi passado junto da família, como se habituou a passar a vida. Raras vezes voltou, desde então, à praia do Tamariz, onde, em bebé, ganhara um concurso de beleza.

No fim do curso, que tirara em Lisboa, especializou-se em Inglaterra. E nesses três anos e meio, não teve férias. “Estava de serviço dia sim, dia não, 24 horas. Tinha um fim-de-semana em cada três.” Uma vida “um bocado complicada”, de que não se arrepende. Foram os Verões do seu “maior conhecimento”.

Avó a cantar na missa

Quantos são os que passam, quantos são os que querem dar “um beijinho”, um abraço ou uma palavra de parabéns ao doutor (“professor” para uns, “mestre” para a maioria)? No dia em que nos sentamos nos bancos que correm as paredes do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa, a instituição festejava os seus 140 anos. E a Gentil Martins, que durante 34 foi chefe do Serviço de Cirurgia Pediátrica, era devida parte das congratulações. (Esta conversa aconteceu dias antes das polémicas declarações sobre homossexualidade e Cristiano Ronaldo). 

Terminado o período de especialização em Inglaterra, começou uma vida de casado. Regressou a Portugal e comprou, nos anos 60, uma casa no Algarve para passar as férias. Era uma das “branquinhas, tipicamente algarvias”, antes da sua “pequena aldeia” se transformar numa “Torremolinos à portuguesa”.

Nesse tempo, aquele Algarve tinha “muito pouca gente”. Mas já era como hoje o considera: “Excepcional.” Levava-lhe cinco horas de viagem, entre “zonas de curvas e contracurvas levadas da breca”. Lembra-se do Hotel Alvor, onde ia ter com amigos, da pastelaria “muito simpática que lá havia”, a Pastelaria Perini do senhor Palma, e dos seus “palmiers deliciosos”.

E que ninguém lhe tirasse o Moisés, o homem que lhe protegia os filhos do mar, quando o trabalho lhe tapava a vista sobre a praia. E havia o senhor daquela “lojinha onde comprava tudo”, o “senhor Vidal”, que “foi sempre um grande amigo e de uma seriedade inultrapassável”.

O “brilhozinho nos olhos” aparece com as pequenas coisas: “Eu ia à missa à Igreja do Alvor e havia uma senhora que cantava muito bem. E achei muita graça que voltei lá, há poucos anos, e ouvi uma voz que conhecia. Mas agora já era avó. Quando eu a conheci, era jovenzinha solteira. Achei curioso naquela vivência de Alvor, tinham passado tantos anos, voltar a encontrar a mesma voz que eu achava que cantava muito bem.”

Toda a carta tem resposta”

A sua casa algarvia tinha vista para o cemitério, de onde observava o “peculiar ofício das carpideiras”, que choravam nos funerais de desconhecidos. “Ainda havia disso quando fui para lá.”

Em 1977, entrou para a Ordem dos Médicos. Era o início de uma “tragédia máxima” que o fizera perder nove Verões. O trabalho continuava a ser a rotina, agora de areia nos pés e com os miúdos pela mão: “Ia sempre, portanto, de manhã buscar a pasta e à noite levar a pasta”, eram os dias todos iguais.

As suas sete crianças — o mais velho com 13 anos — iam para a praia e ele também. “Só que eu ficava na barraca a ditar cartas em três gravadorzinhos.” Passava manhã e tarde, no areal, longe do mar, a responder oralmente às cartas que recebia. Gravava as respostas nas cassetes que as dactilógrafas — “abençoadas” — da Ordem dos Médicos de Lisboa haviam de rebobinar e passar na máquina no dia seguinte.

O que dactilografavam estas mulheres, que Gentil Martins recorda pelo bater das teclas da máquina de escrever, era toda a correspondência que recebia. “Tinha um princípio que muita gente criticava: eu nunca deixava de responder a tudo o que escreviam para o presidente da Ordem. Eu entendia que toda a carta tem resposta.”

“Nas férias tinha menos trabalho e estava sossegado, mas apesar de tudo estava a tentar despachar trabalho, porque entendia que a ordem não podia parar durante um mês porque estava de férias.” A mulher é que “dourava a pílula”.

A casinha do Algarve está agora noutras mãos, e aos 87 anos, as férias são passadas em Lisboa. Sempre junto da família. “Tenho sempre coisas para fazer, felizmente”, e por isso o médico, que recusa a reforma, volta aos tempos em que o mês completo de férias de Verão já não existe.

Sugerir correcção
Ler 38 comentários