Para que a escola não seja uma “catedral do tédio” é preciso que os alunos contem

Pode parecer pouca coisa, mas esse pouco, que em Portugal será sempre muito, poderia curar o crescente desamor dos jovens face à escola. Basta começar por lhes “dar voz”, permitir que no ensino secundário sejam eles a escolher disciplinas em função dos seus “interesses e talentos” e adaptar programa

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No ensino secundário deviam ser os alunos a escolher disciplinas em função dos seus “interesses e talentos”, dizem estudantes e especialistas Enric Vives-Rubio

Missão impossível? “Se outros países já o fizeram, nós também podemos, embora isso signifique uma grande transformação do ensino em Portugal”, responde Manuel Magalhães, 20 anos, que está a estudar no Instituto Politécnico de Leiria. É um dos seis jovens, entre os 16 e os 20 anos, a quem o PÚBLICO perguntou: o que pode ser mudado nas escolas para que estas (e o processo de aprendizagem) se tornem mais atractivos para os alunos. A mesma questão foi também colocada a pais e professores.

Na base deste desafio estão os resultados do último estudo internacional sobre a adolescência, da Organização Mundial de Saúde, divulgados no mês passado, que tem na base inquéritos realizados a mais de 220 mil adolescentes, dos quais cerca de seis mil são portugueses. Não será decerto, por acaso, que estes aparecem entre os que gostam menos da escola, colocando Portugal na 33.ª pior posição entre os 42 países e regiões analisados.

Nem sempre foi assim. Em 1997/98 o país ocupava a segunda posição neste indicador, mas em 2014/2015, ano do último estudo, apenas 25% dos alunos portugueses com 15 anos disseram que gostavam muito da escola. Mais concretamente, põem em causa as aulas, que consideram aborrecidas, e a matéria que ali é dada, descrita por eles como sendo excessiva.  

“Estou um pouco desanimada”, desabafa Daniela Guilherme a propósito da sua experiência escolar. “Não temos voz nas aulas e devíamos ter. É uma das formas de expressão mais importantes, mas nós só escrevemos. Existe muito pouco diálogo entre alunos e professores e a confiança é assim quase nula”, descreve a aluna de 18 anos, que frequenta o 12.º ano numa escola de Angra do Heroísmo, Açores.

À semelhança dos outros jovens com quem o PÚBLICO falou, Daniela faz parte do projecto Dream Teens, criado em 2014 pela associação nacional de promoção da saúde dos jovens, Aventura Social, responsável pelo estudo da OMS em Portugal, e que tem precisamente, entre os seus objectivos principais “ouvir a voz” dos mais novos e dá-la a conhecer. A escola é dos temas sempre presentes.

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O ensino como uma linha de montagem

Tal como estão, “as escolas tornam-se, para inúmeras crianças e adolescentes, verdadeiras catedrais do tédio”, alerta Ilídia Cabral, docente da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, com vários trabalhos realizados sobre o insucesso escolar no ensino básico e secundário. E isto acontece, frisa, porque se “ensina hoje como se ensinava há 200 anos”, seguindo uma estrutura construída com o advento da Revolução Industrial e que se traduz num “modelo de organização escolar padronizado, de inspiração fabril, do tipo linha de montagem, que permitiu às escolas darem o mesmo a todos”.

Porém, prossegue esta investigadora, os alunos de hoje são bem diferentes do que eram há dois séculos. “São alunos cada vez mais heterogéneos, com acesso quase imediato a inúmeras fontes de informação, nativos digitais para quem as metodologias de ensino tendencialmente expositivas e fragmentadoras do conhecimento se revelam, muitas vezes, totalmente desadequadas e muito pouco apelativas”, diz. E é assim que o tempo escolar se “torna, em muitos casos, um tempo vazio de significado para os alunos, por se encontrar completamente afastado da sua realidade, dos seus interesses e das suas necessidades”.

Usar a sério as novas tecnologias

Embora por outras palavras, Marta Martins, 20 anos, que está a estudar no Instituto Politécnico da Maia, aponta no mesmo sentido. “O ensino está a querer fazer de nós máquinas. Somos obrigados a estar mais horas na escola, a estudar mais matéria, o que só nos provoca mais stress”, diz, para acrescentar que “a falta de interesse dos jovens não é pela escola em si, mas sim pelas aulas e pelos conteúdos ali leccionados, que muitas vezes não vão ser precisos” no futuro.

Sabe isso, sobretudo, pelos seus colegas que frequentam o ensino regular: “Muitos não percebem metade do que estão a dar nas aulas, o que os leva a ficar desmotivados e até a desistir”, refere. Ela frequentou duas escolas profissionais, onde tirou um curso de animação digital. “Não tive professores a debitar a matéria. Mesmo a Português, tive uma professora que nos deu a matéria de forma tão apelativa, que ainda hoje a sei.”

Qual foi o segredo? “Primeiro de tudo deixava-nos à vontade e depois procurava sempre adaptar as aulas aos objectivos do curso, propondo-nos, por exemplo, que fizéssemos uma peça de teatro ou um vídeo a partir de excertos dos livros que são obrigatórios no 12.º ano.”

Já se sabe que os professores podem fazer a diferença e Marta tem uma proposta a fazer-lhes: usem, de facto, “as novas tecnologias nas aulas, porque assim vamos estar mais atentos”. Esta é também uma das sugestões apresentadas pelos professores do 3.º ciclo e secundário, Luísa Mantas e Ricardo Montes, que também é autor do blogue ProfLusos, um dos mais antigos na área da Educação.

“Aproximar, quando oportuno e possível, as metodologias de ensino à realidade dos alunos, nomeadamente na utilização das novas tecnologias, poderá ser um elemento motivador”, constata este último, para alertar de seguida: “Quando falo em novas tecnologias, não me refiro às já desgastadas apresentações multimédia, mas sim à utilização de aplicações virtuais e recorrendo aos melhores amigos tecnológicos dos nossos alunos — os tablets e smartphones”.

“Não se justifica que se o aluno pode adquirir um tablet com todos os manuais digitais e usá-lo em sala de aula e em casa, tenha que carregar com quilos de livros, com as implicações para a sua saúde e a carteira dos pais”, acrescenta Luísa Mantas, que ensina no Alentejo.

Professora há 23 anos, mãe de quatro filhos, esta docente foi também mediadora da associação Empresários para a Inclusão Social, onde trabalhou com alunos que têm percursos difíceis na escola e com as suas famílias. A estas experiências junta-se ainda a colaboração com Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, onde, como diz, “a maioria das situações se prendem, de uma forma ou de outra, com o insucesso e o absentismo ou abandono escolar”.

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À semelhança da aluna Marta Martins, defende ser “importante reconhecer que mais não é necessariamente melhor”. “Passar mais tempo na escola, assimilar maior quantidade de informação, permanecer na escola mais anos, não é sinónimo de garantir a aprendizagem, a motivação ou o sucesso futuro, pelo menos para muitos alunos”, alerta. Aliás, acrescenta, “para a maioria dos jovens a escola não tem nada para oferecer neste momento”. Para ela, é esta a questão de fundo que hoje se coloca.

Poder escolher as disciplinas

O que é preciso fazer então? “Há que repensar os currículos, as metas e os manuais escolares”, defende, para acrescentar de seguida: “Porque não diversificar os currículos, dando algumas opções aos jovens de acordo com os seus talentos, as suas competências, as suas aspirações futuras? Porque não promover e privilegiar a interdisciplinaridade e o relacionar de conhecimentos através de projectos e outras actividades?”

 “Os currículos são demasiados rígidos. Cada aluno deveria ter um plano curricular [escolha de disciplinas] baseado nos seus interesses e talentos”, corrobora o aluno do Politécnico de Leiria, Manuel Magalhães. É o que acontece, por exemplo, no Reino Unido nos anos equivalentes ao 11.º e 12.º, em que os alunos apenas têm três cadeiras (menos de metade do que por cá), que são escolhidas por eles. Nelson Rebelo, 16 anos, que está no 10.º ano numa escola de Oeiras, lamenta que no ensino secundário não seja possível esta escolha e que tenha sido obrigado a prescindir de disciplinas de que gostava por ter optado pelo curso de Ciências e Tecnologias em vez de Ciências Socioeconómicas.

“Temos um sistema educativo muito formatado, que é excessivamente teórico e onde temos quase sempre de ouvir o professor, quando também deviam permitir que fossemos nós a pesquisar e a apresentar as matérias, o que só acontece muito raramente”, aponta Sara Fialho, 18 anos, que entrou este ano no curso de Bioquímica da Universidade Nova de Lisboa.

Nelson concorda. Defende que as aulas deveriam ter uma componente mais prática e sobretudo que os professores dessem mais autonomia aos alunos, para que estes “pudessem descobrir por si próprios” como se solucionam problemas ou se interpretam textos, em vez de se limitarem “a estar a ouvir “. Diz ainda que o sistema de ensino em Portugal “não abre portas a novas ideias, à discussão e ao debate”.

Para Carla Pereira, presidente da Associação de Pais da Escola Secundário Eça de Queirós, na Póvoa do Varzim, os tempos curriculares deveriam ser diminuídos também para permitir a realização de debates e tertúlias sobre temas vários, que fizessem da “escola um local de aprendizagem transversal, logo a começar no ensino básico”. Diz ainda a este respeito que “as escolas têm também de formar bons cidadãos”.

É disso também que fala Daniela Guimarães, quando propõe que se promova uma maior ligação da escola ao meio envolvente, incentivando os alunos a procurarem saber, por exemplo, que projectos existem nas autarquias e a apresentá-los periodicamente. “Deste modo os alunos vão sentir-se abraçados pela comunidade. É assim que se cresce como pessoa, o que não se consegue pela imposição de regras e pela pressão que nos é posta em cima, sobretudo por causa dos exames”, defende.

Falta de apoio dos professores

Os jovens ouvidos pelo PÚBLICO lamentam ainda que a escola desvalorize ou mesmo ignore temas que para eles são fundamentais, como a família ou a educação sexual. Mas Teresa Carreira, 18 anos, que estuda em Salvaterra de Magos e vai este ano repetir os exames para melhorar a média e conseguir entrar em Medicina, aponta também o dedo aos alunos. “Pensei que ia haver troca de informações e debate entre Associações de Estudantes sobre o que podíamos fazer nas escolas, mas isso não acontece”, refere.

Queixa-se ainda “da falta de apoio dos professores fora da sala de aula”. “Só existe quando se aproximam os exames”, constata.

“Os professores estão transformados em burocratas do cumprimento de metas curriculares que parecem listas de compras mensais no hipermercado e não investem na relação interpessoal com os alunos por falta de condições, mas também por excesso de autocomiseração, desfiando sistematicamente queixas sobre tudo e todos, a começar pelos alunos”, critica Jorge Ferraz, que pertenceu à direcção da Associação de Pais do Agrupamento de Escolas Baixa-Chiado, em Lisboa.

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Uma das formas de aproximar professores e estudantes passará, segundo ele, por acabar com o actual Estatuto do Aluno, que “transforma os docentes em queixinhas e contribui para destruir a ligação imprescindível entre disciplina, aprendizagem e empatia interpessoal”.

Um novo papel para docentes e alunos

Para a investigadora da Universidade Católica Ilídia Cabral é “urgente” alterar não só a organização escolar, como também as práticas pedagógicas, o que passará, entre outras medidas, por atribuir um novo significado ao papel do professor e do aluno. Orientando o professor “para uma acção de mediação entre os alunos e o saber, tornando-o um facilitador das aprendizagens, um professor que responsabiliza, mas apoia e suporta e que fomenta a autonomia dos seus alunos”. Já o aluno, acrescenta, deve ser encarado como “o actor central das suas aprendizagens, envolvendo-o e comprometendo-o em torno de objectivos claros, que sejam delineados conjuntamente com os professores”.

Esta centralidade do aluno é, aliás, uma das estratégias da Finlândia, geralmente apontada como modelo no campo do ensino, para adaptar a escola a um “mundo que está a mudar a grande velocidade”, segundo palavras da directora do Conselho Nacional de Educação finlandês.

A reforma educativa, que entrará em vigor no próximo ano lectivo, porá assim os estudantes a participar na elaboração dos currículos, na escolha dos temas que serão abordados nos novos módulos que vão ser oferecidos pelas escolas e onde, a propósito de cada tópico, serão mobilizados conhecimentos de várias disciplinas, sempre com aplicações práticas.

De regresso a solo português, Nelson Rebelo, o estudante de 16 anos de Oeiras, conta que não tem tido problemas com o seu desempenho escolar. Mas esta é só uma das faces da moeda. “Sei que cresceria mais se o meio da educação fosse diferente do que é”, remata.

Para conseguir essa diferença, Ilídia Cabral considera que se devem “criar condições para fazer emergir novas possibilidades de sucesso, o que significa equacionar novos modos de agrupar os alunos, segundo matrizes flexíveis”. E, por outro lado, apostar na “diversificação dos modos de trabalho pedagógico, porque os alunos aprendem de forma diferente e a forma de ensinar não pode continuar a assentar na forma escolar, que deixa de fora todos aqueles que não se encaixam no perfil (ficcionado) do aluno médio”.

Já para Ricardo Montes, que lecciona em Trás-os-Montes, há uma condição prévia sem a qual não se conseguirá alterar a relação que os alunos têm com o ensino e que, segundo ele, não tem sido acautelada pelo poder político, bem pelo contrário: “A primeira forma de tornar mais atractiva a escola aos alunos passará por essa mesma escola conseguir motivar os professores. Sem professores motivados, dificilmente teremos alunos que o estejam.”

Embora considere que o sucesso do resto, que é muito, dependerá desta premissa, este docente tem mais sugestões a apresentar com vista a reforçar a atracção dos alunos pela escola. Diz que a redução do número de alunos por turma, um tema que está agora a ser debatido no Parlamento, “poderá fomentar a motivação dos alunos” por permitir “um ensino mais individualizado”, o que nunca poderá suceder numa turma de 30 alunos.

Na sua experiência profissional, Ricardo Montes tem constatado que, geralmente, os alunos “não definem objectivos com vista a conseguirem uma vida melhor”, embora acredite que sintam essa necessidade, ou então “fazem-no de forma pouca clara”. Por outro lado, recorda, estes “mesmos alunos deparam-se com o insucesso profissional dos seus irmãos, amigos ou conhecidos mais velhos que conseguiram concluir cursos superiores”. Defende, por isso, que “estas duas situações poderiam ser trabalhadas na escola, por técnicos com formação para o efeito, e em articulação com os docentes, de modo a que os alunos definissem ou redefinissem objectivos tendo em vista a realidade nacional e europeia”.

Mas ainda há mais por fazer. A presidente da associação de pais da secundária Eça de Queirós considera indispensável que se tenha “um objectivo para a educação estável e duradouro, imune às alterações políticas”. “A escola deve ser um local de formação e não de autenticação de cunhos pessoais”, frisa Carla Pereira. Esta é também uma das propostas da aluna Daniela Guimarães com vista a tornar a escola um sítio melhor. “É muito complicado vivermos sempre na suspeita de que no próximo ano tudo vai ser diferente outra vez”, queixa-se.

E se nada mudar entretanto? Para Ilídia Cabral não subsistem dúvidas sobre o desfecho: “As escolas têm de aprender a ensinar no século XXI, sob pena de se tornarem dispensáveis.”

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