Abateu um cão vadio a tiro e a justiça não pôde puni-lo por isso

Magistrados continuam a ser confrontados com incongruências da lei que criminaliza maus tratos a animais de companhia.

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enric vives-rubio

Uma juíza do Tribunal de Setúbal declarou-se esta terça-feira impotente para punir devidamente, na sua opinião, o abate de um cão a tiro. Em causa está um vazio legal que não permite condenar quem abate injustificada e intencionalmente um animal de companhia – embora a lei puna os culpados de meros maus tratos por negligência. “O legislador esqueceu-se” de que os animais de companhia podem ser mortos de propósito, lamentou a magistrada, que mesmo assim não deixou o crime impune, tendo aplicado ao autor dos tiros que mataram o cão uma multa por ter causado sofrimento ao animal.

Carpinteiro de profissão, o arguido alegou que o animal fazia parte de uma matilha que já lhe havia comido várias galinhas num terreno que tinha no concelho de Palmela, na Quinta da Marquesa. Num final de tarde de Abril do ano passado, quando viu os animais aproximarem-se uma vez mais, resolveu ir buscar uma espingarda e disparou. Fê-lo por duas vezes, tendo o segundo tiro atingido a cervical do cão, matando-o. Depois cavou um buraco e enterrou-o, enquanto os outros cães fugiam. Foi desse buraco que o animal foi resgatado pela GNR, para ser autopsiado.

Resolver este e outros problemas das leis que protegem os animais é o objectivo de vários projectos de lei que estão a ser neste momento discutidas no Parlamento. Mas as propostas do PS e, sobretudo, do PAN – Pessoas, Animais, Natureza foram já alvo de vários reparos por parte quer do Conselho Superior da Magistratura quer do Conselho Superior do Ministério Público, órgãos aos quais a Assembleia da República pediu parecer.

Criticando o facto de a legislação em vigor ter deixado de fora o crime mais grave de todos contra os animais de companhia – o seu abate propositado –, o Conselho Superior do Ministério Público vem alertar para os problemas decorrentes de novas alterações legislativas feitas sem rigor: “As alterações que se pretendem introduzir ao nível do direito civil, separando definitivamente o conceito de animal do de coisa, irá determinar a criação de um vazio normativo na punição de condutas dolosas que conduzam à morte de animais de qualquer espécie que tenham dono (…).” Ou seja, “diminui-se uma vez mais a abrangência da esfera de protecção dos animais”, ao contrário do que pretendem e têm anunciado os deputados.

“Algumas das alterações preconizadas podem, na prática, acarretar maiores problemas do que aqueles a que procuram dar resposta”, tinha também avisado o Conselho Superior da Magistratura.

O facto de ter na sua posse armas de fogo sem licença custou ao carpinteiro de Palmela, Clementino Gonçalves, de 55 anos de idade, mais dinheiro do que a morte do cão vadio: a multa pelas espingardas valeu-lhe cerca de dois mil euros, enquanto a do abate do animal não passou dos 700. Também foi proibido, como pena acessória, de ter animais de companhia durante um ano.

À saída do tribunal o arguido não se inibia de reclamar contra as matilhas sem dono: “Há pessoas que lhes dão montes de comida. E há quem já não consiga passar nalguns sítios, com medo deles”.

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