E se os jovens sem maturidade ficassem fora da prisão?

O juiz desembargador Paulo Guerra chama-lhe uma tese “saudavelmente ousada”. Foi defendida por Ana Rita Alfaiate na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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No fim de 2015, as prisões acolhiam 279 reclusos com menos de 21 anos. Desses, 90 contavam menos de 18 anos NELSON GARRIDO

Deve quem tem entre 16 e 21 anos ser julgado num tribunal de adultos e condenado a uma pena de prisão? “Só se tiver maturidade suficiente”, responde Ana Rita Alfaiate, na tese de doutoramento que defendeu na semana passada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Se não tiver, deve sujeitar-se à justiça juvenil.

Seria uma grande mudança. Até aos 12 anos, por mais grave que seja o comportamento infantil, só se aplica a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. Entre os 12 e os 16 anos, vale a Lei Tutelar Educativa, pensada não para punir, mas para fazer com que adolescentes que cometeram actos tipificados como crime aprendam valores fundamentais. Dos 16 aos 21, todavia, vigora o regime penal, ainda que com regras especiais.

A jurista, de 34 anos, chama “grande ficção do direito” à maioridade penal, ou seja, à idade a partir da qual uma pessoa responde por violar a lei como um adulto. “Em Portugal, um rapaz ou rapariga com 15 anos e 364 dias não tem capacidade de culpa. Um dia depois, completa 16 anos, já tem capacidade de culpa.” É como se a maturidade fosse algo que se adquire da noite para o dia.

A académica cruzou o Direito com várias ciências sociais e médicas. Concluiu que o contexto pessoal, familiar e social influencia a maturidade, critério que a idade, por si só, não determina. Combinar idade com desenvolvimento psicológico seria, na sua opinião, uma forma de fazer emergir um “Direito mais justo, no sentido em que iria ao encontro de cada pessoa em concreto”.

“Há um consenso científico de que até aos 18 anos o mais provável é a capacidade de culpa não estar reunida e por isso acho que deveria ser avaliada sempre. Entre os 18 e os 21 anos, devia ser avaliada quando se entendesse que essa capacidade poderia estar em causa”, esclarece. Por quem? “Pelas equipas de apoio técnico aos tribunais”, responde. “Naturalmente, teriam de ser reforçadas, mas não me parece que a falta de recursos seja motivo para recusar esta solução.”

Numa atitude invulgar numa tese, propõe uma alteração ao artigo 19 do Código Penal: “Os menores de 16 anos são inimputáveis. 2. Os maiores de 16 e menores de 21 anos são inimputáveis, salvo se se verificar a completude do seu intellectus criminalis no momento da prática do facto. 3. Entre os 16 e os 18 anos, é obrigatória a apreciação da condição de imputabilidade.”

Saltar barreiras

“Entendo que a tese defendida por Ana Rita Alfaiate é saudavelmente ousada e viável, sob o ponto de vista técnico”, comenta Paulo Guerra, director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários. “Traz para o debate – e as teses de doutoramento também têm de saltar barreiras e ser inovadoramente atrevidas, mesmo sob o ponto de vista técnico-jurídico –  o novo conceito de intellectus criminalis”. Os menores de 18 anos, lembra aquele juiz desembargador, “ainda são crianças sob o ponto de vista da Convenção dos Direitos da Criança”. Atendendo ao seu desenvolvimento físico, mental e psicológico, “não se lhe deve aplicar, de forma cega e automática, a última ratio da intervenção penal”.

O procurador Norberto Martins, que já presidiu à Comissão de Fiscalização dos Centros Educativos e faz parte da direcção da Crescer Ser – Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família, preferia a simples subida da maioridade penal para os 18 anos. “É uma opção política”, lembra.

Para o procurador Rui do Carmo, membro do conselho consultivo do Observatório Permanente de Justiça, este assunto “não é prioritário”. Já para Maria João Leote de Carvalho, investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é um dos maiores desafios da justiça juvenil. Portugal, salienta aquela especialista em sociologia do desenvolvimento, “é um dos poucos países europeus onde não há coincidência entre maioridade penal e maioridade civil”.

A situação é paradoxal. Antes dos 18 anos, ninguém pode votar nem ser eleito. Não pode  comprar uma bebida alcoólica. Nem conduzir automóveis, apenas motociclos de baixa cilindrada e com autorização de quem tem responsabilidade parental. Também não pode assinar um contrato sem esse aval. Tão-pouco sair do espaço Schengen. Se precisar de assistência médica é encaminhado para o serviço de pediatria. Aos 16 anos, porém, quem pratica actos tipificados como crimes é julgado como um adulto e pode ser preso como um adulto de 40 ou 50 ou 60 anos. E se adoece? “Vai o pediatra ou o pedopsiquiatra à prisão?”, questiona Maria João Leote.

A socióloga traduz a referida contradição desta forma: por um lado, “desvaloriza-se a capacidade de acção, autonomia, liberdade e responsabilidade até aos 18 anos”; por outro, “aceita-se o entendimento da sua competência individual para delinquir, promovendo-se a sua responsabilização criminal aos 16 anos”. Num período em que a condição juvenil é prolongada até limites antes inimagináveis, “seria importante discutir os motivos desta contradição”. 

“A subida da maioridade penal para os 18 anos devia ser assegurada à partida, como recomenda a Convenção dos Direitos da Criança, ratificada por Portugal, e o Comité dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas”, corrobora Manuel Sarmento, especialista em sociologia da infância. “A escolaridade obrigatória prolongou-se até aos 18 anos e ao 12º ano e isso já deveria ter tido reflexos nas medidas de natureza jurídica”, sustenta.

Ensino na prisão

Afigura-se-lhe “difícil” cumprir o preceito na prisão. “O ensino que existe nas prisões de adultos não tem o nível de exigência do ensino regular”, diz aquele investigador do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho. Nem sequer em Leiria, na prisão-escola, destinada a jovens entre os 16 e os 21 anos.

Na sua opinião, impunha-se discutir não só este aspecto, mas toda a ideia de maioridade. Há um consenso científico em torno do desenvolvimento alcançado aos 18 anos. É dentro desse princípio que questiona, por exemplo, que a idade legal para trabalhar sem restrições continue a ser 16 anos. E que se distancia de quem defende uma diminuição da idade de voto dos 18 para os 16 anos.

Ana Rita Alfaiate já contava com a possibilidade de ouvir defender uma mera subida da idade penal para os 18 anos, em vez da subida condicionada que ela propõe. Parece-lhe, contudo, “menos interessante fazer isso, e correr o risco de deixar de fora pessoas de 16 e 17 anos que têm capacidade de culpa”; ou de julgar e condenar pessoas entre os 18 e os 21 que não têm essa capacidade de culpa.

“Não vale a pena pensarmos numa revolução”, começa por dizer Rosa Clemente, do Centro de Direito da Família da Universidade de Coimbra. “Já não temos a presunção de que idade é igual a maturidade”, continua. É evidente que há muitos factores, para lá da idade, a influenciar o desenvolvimento físico, psicológico e social de cada um. “Há pessoas que só atingem a maturidade aos 40 ou 50 anos”, enfatiza. A lei, porém, tem de fixar um limite. E, na sua opinião, esse limite é o da maioridade civil.

Rosa Clemente conhece o trabalho de Ana Rita Alfaiate, de quem é colega na Universidade de Coimbra. Concorda com a ideia de subir a imputabilidade para os 18 anos, mas faria das perícias à capacidade de culpa não uma regra, mas uma excepção. No fundo, abriria uma porta para, no caso de estar em causa crime grave, e desconfiando-se que o adolescente tinha capacidade de perceber o alcance dos seus actos, pedir uma perícia que permitisse julgá-lo como adulto.

Para os mais velhos, Rosa Clemente menciona o regime especial para jovens,  aprovado em 1982, que “na época foi uma pedra no charco, mas continua a ter aspectos que nem foram regulamentados”. Norberto Martins, procurador nas Varas Criminais do Porto,  também apontou nessa direcção: se cometer crimes pouco graves, é possível aplicar medidas previstas na lei tutelar educativa. Se cometer crimes graves, pode ver a pena atenuada em função da idade e de não ter registo criminal.

Igual linha de argumentação segue o procurador Rui do Carmo: “É imperioso repensar o actual regime penal dos jovens imputáveis entre os 16 e os 21 anos, que nunca foi devidamente implementado, bem como a sua articulação com a Lei Tutelar Educativa”. Esses “problemas têm vindo a ser, incompreensivelmente, esquecidos”, critica ainda o magistrado, atribuindo à tese de Ana Rita Alfaiate a “virtude de relançar este debate e trazer novos argumentos para a reflexão, necessária, sobre as questões da responsabilidade criminal dos jovens entre os 16 e os 21 anos de idade”.

Presos entre adultos

Estão, por exemplo, por construir os centros de detenção, estruturas com uma filosofia intermédia entre os centros educativos e as prisões, previstos desde 1982. E nem todos os jovens são enviados para a prisão-escola, em Leiria. Muitos ficam em cadeias comuns entre presos bem mais velhos, motivo pelo qual de vez em quando Portugal é chamado à atenção por violar o princípio de separação das intervenções judiciais, juntando menores e maiores de idade, achega Maria João Leote de Carvalho.

No final do ano passado, segundo a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, havia 279 reclusos com menos de 21 anos. Noventa contavam 16, 17 ou 18 anos. E 189 tinham 19 ou 20 anos. Apenas um deles estava a cumprir uma medida de segurança, isto é, tinha sido declarado inimputável.

O debate está lançado. Agora, como diz Maria João Leote, “nenhuma mudança destas poderá acontecer sem debate público, apoio social, condições para aplicar a mudança”. Seria necessário reorganizar serviços, no mínimo. De outro modo, onde seriam colocados os 90 jovens com idades compreendidas entre os 16 e os 18 anos?, questiona. O país fechou recentemente dois centros educativos, um na Madeira e outro em Vila do Conde. O número de jovens internados baixou, mas o número de vagas não chegaria. Em Abril, estavam 143 jovens em seis centros educativos preparados para acolher até 198

 

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