Penalidade de expressão

No ano em que se assinalam quatro décadas desde a revolução de 25 de Abril de 1974, a liberdade de expressão que – supostamente – dela resultou ainda não é um conceito completamente compreendido e consolidado.

Não porque exista uma entidade “oficial”, estatal, que imponha a censura prévia a órgãos de comunicação social mas sim porque ainda existem muitas pessoas em Portugal que pensam que a emissão de determinadas informações ou opiniões, pela sua forma e/ou o seu conteúdo, deve ser passível de penalização criminal, corporativa ou administrativa… apesar de aquelas não conterem, à partida e aparentemente, elementos falsos e/ou difamatórios. Seguem-se quatro exemplos recentes.

Primeiro… Em Novembro de 2013 o presidente da direcção do Sporting Club de Portugal afirmou em Braga perante adeptos do seu clube : “Há uma solução simples que as pessoas ainda não descobriram. Quando quiserem começar a resolver os problemas de Portugal é fácil, tiramos o vermelho da bandeira e é tudo nosso.” Em reacção foi iniciada uma petição intitulada “Presidente Bruno de Carvalho para a prisão”, que sustentava a sua exigência com o Artigo 332.º do Código Penal, que estabelece que quem “ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.” A 15 de Fevereiro último 392 pessoas haviam assinado a petição. Contudo, o presidente do Sporting mais não fez do que uma exortação clubística, provocatória mas bem-humorada; não era para ser levada a sério. Porém… e se fosse? Qual é o problema, o “crime”, em se propor (um)a mudança n(um d)os símbolos nacionais? Eles são eternos, imutáveis? E no caso da bandeira não é só o vermelho que deveria ser tirado mas também o verde: tal como está ela é o estandarte do Grande Oriente Lusitano e da Carbonária, ou seja, de regicidas, de criminosos. Um dos maiores escritores portugueses considerou-a um “ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional; trapo contrário à heráldica e à estética porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor; está ali contudo a alma do republicanismo português, o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que por direito mental devem alimentar-se.” Acaso os autores da referida petição quererão também multar ou prender Fernando Pessoa, mesmo que postumamente?

Os segundo e terceiro exemplos envolvem juristas, respectivamente advogados e procuradores. Em Dezembro de 2013 as queixas enviadas à Ordem dos Advogados contra Rosário Mattos e Associados, e o vídeo promocional que aquela sociedade produziu e divulgou, por “colegas” preocupados com a “dignidade da profissão” constituíram demonstrações do mais hipócrita, invejoso e patético puritanismo verificado nos últimos 40 anos. E, em Janeiro de 2014, a proposta, apresentada num relatório da Procuradoria-Geral da República da autoria de João Rato, de os jornalistas que divulgam pormenores de processos em segredo de justiça (verdadeiros, e obtidos de funcionários judiciais) serem sujeitos a escutas, e a buscas na suas casas e locais de trabalho, é por sua vez a prova de que há na PGR quem tenha vontade de tentar compensar os fracassos nas salas de audiência com comportamentos persecutórios indignos de uma sociedade democrática e moderna. Já agora, porque não reactivar os tribunais plenários?

O quarto exemplo refere-se ao “acordo ortográfico”. Têm-se sucedido os casos de cidadãos a quem são recusadas regalias – ou, pior, a quem são aplicadas sanções – pessoais e/ou profissionais por se recusarem, com toda a legitimidade, a submeter-se à ilegal perversão da língua portuguesa decidida por uma ínfima minoria. Como o escritor Abel Neves, que revelou em Janeiro último que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda não edita três das suas peças de teatro por ele não querer a(dul)terar aquelas segundo o infame (des)acordo. Será possível que na INCM não exista quem conheça e tenha lido o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos nacional, que também reflecte e replica legislação e jurisprudência internacionais, e que dá inequivocamente a todos os artistas a prerrogativa de utilizarem e de verem respeitada a linguagem que eles quiserem? E os “antifascistas”, que, sob o menor pretexto e contra qualquer opressão, real ou imaginária, se manifestam, protestam, e cantam “Grândola, Vila Morena”, vão conformar-se, 40 anos depois, com celebrar “abril” com letra pequena? Vão aceitar a delapidação da ortografia que imita e até intensifica a que foi feita em 1943 em pleno regime do Estado Novo (sim, também foi essa a designação no Brasil) de Getúlio Vargas, numa manobra de deliberado afrontamento e afastamento – cultural e não só – em relação a Portugal?

Infelizmente, não faltam neste “jardim à beira-mar plantado” as pessoas que estão disponíveis para fazer queixas e cumprir ordens, por mais absurdas que sejam. O que explica também porque é que aqui se viveu em ditadura(s) durante mais de 70 anos. Ou serão mais de 100?

Jornalista e escritor

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