Se perdermos esta oportunidade, de quem será a culpa?

O tempo do pós-troika acabou. O próximo tempo é de quem o conseguir agarrar.

Esta semana soube que tinha chegado a Portugal quando vi a enorme nuvem de fumo do incêndio de Vila Velha de Ródão. A partir do céu, era uma extensa formação achatada de fuligem, incongruentemente coroada por uma nuvem branca e rosada que lá devia estar antes, e ligada à terra por vários pares de colunas de fumo espesso que se elevavam a partir de cada uma das frentes de incêndio cá em baixo.

Meia hora depois o avião aproxima-se de uma gloriosa Lisboa ao fim da tarde, contorna o estuário do Tejo e sobrevoa o Atlântico para dar a volta sobre a Península de Setúbal e fazer-se à pista com uma das aterragens mais incrivelmente bonitas que se pode observar. Nas reações dos viajantes percebe-se o espanto e a antecipação da chegada. Cá em baixo, um aeroporto cheíinho revela a mesma excitação e potencial que encontraríamos se fosse no Porto, em Faro, nos Açores ou na Madeira. Um Portugal saindo da crise, moderno, aberto e progressista é certamente um dos melhores países do mundo para se estar. Nós sabemos isso, eles também.

Mas não posso estar feliz, nem pode ninguém que se lembre que o interior do país está a arder. Antes em Pedrógão, agora em Mação, passando pela região que eu vi arder do céu e que ainda há semanas atravessei, maravilhado, de comboio. O potencial do nosso interior é enorme e está por desenvolver; tragicamente, estamos a desperdiçá-lo. Ora, Portugal não é um problema impossível de o resolver. Claro que outros também ardem e claro que o clima em mudança torna as coisas mais difíceis. Mas não se pode aceitar que há décadas continuemos a ser dos que mais ardem e daqueles que, na Europa, têm o seu território menos organizado, protegido e valorizado. Este é um desafio que não temos o direito de falhar.

Também não posso estar feliz porque sei que em Portugal me espera um debate político quase inqualificável na sua falta de qualidade. O tema do momento, vejo antes de chegar, é uma lista de mortos do incêndio de Pedrógão feita por uma amadora (ainda que com boas intenções e um motivo nobre) e que, como seria de esperar, está cheia de repetições e incorreções, mas que sempre serve para encher a agenda política e mediática com um oportunismo macabro. A política não precisa de ser isto.

Portugal saiu de uma crise profunda, e pode talvez quebrar um ciclo de depressão e euforia que dura há décadas. A economia cresce e voltou a convergir com a Europa, a sociedade afirma-se, a criatividade, cultura, ciência e património valorizam-se dentro e fora do país. Este é o momento em que podemos, como um país coeso e desenvolvido, discutir aquilo que Portugal pode ser nas próximas décadas. E não o estamos a fazer.

Vejo, na minha área ideológica, que se culpa a direita pela sua inanidade política. É difícil discordar; a utilização do "caso da lista" pelo novo líder parlamentar do PSD fez lembrar os piores momentos dos ataques a Obama pelos republicanos dos EUA. Mas nós não somos uma superpotência disfuncional. Compete também à maioria de esquerda, numa das poucas oportunidades que tem de conduzir a agenda no nosso país, conseguir recuperar a oposição para um debate político positivo. Onde estão as discussões sobre regionalização, sobre o futuro da universidade, sobre energias renováveis, sobre a economia do mar, sobre o impacto da automação no trabalho, sobre Portugal na globalização, sobre a valorização das pessoas, do conhecimento e do território? A geringonça precisa de falar mais entre si, e muito mais com a sua base de apoio social, se quiser envolver a sociedade num debate que deixe uma marca para o futuro.

O tempo do pós-troika acabou. O próximo tempo é de quem o conseguir agarrar. Mais ao menos que o faça com uma política de conteúdo e de futuro. Caso contrário, voltaremos à nossa bipolaridade. E a culpa de perdermos esta oportunidade de pensar Portugal nas próximas décadas não será da sociedade, da academia, ou sequer do jornalismo. A culpa será dos políticos e dos partidos.

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