Offshores: elogio do populismo e da demagogia

Se apenas os muito ricos podem pagar menos impostos, isso só pode ser classificado de uma forma: absolutamente escandaloso.

Chateia-me um bocado que a maior parte dos meus amigos de direita não consiga escrever um artigo sobre offshores sem alertar para os perigos do “populismo” e da “demagogia”. Se por populismo e demagogia entendermos uma divisão radical, e pouco subtil, entre “puros” e “impuros”, “certos” e “errados”, “bons” e “maus”, então há que celebrar o populismo e a demagogia em torno das offshores – porque nada de bom vem dali. Quando António Costa diz ser “absolutamente escandaloso que um Governo que não hesitou em acabar com a penhora da casa de morada de família por qualquer dívida tenha tido a incapacidade de verificar o que aconteceu com 10 mil milhões de euros que fugiram do país” é sempre possível argumentar que o primeiro-ministro foi infeliz na utilização do verbo “fugir” (aquele dinheiro é de portugueses, não é de Portugal) e que se está a esquecer do lastimável papel do PS em tantas negociatas. Mas, na substância, Costa está certo. É realmente indigno espremer um contribuinte por dever dez euros ao fisco e ignorar dez mil milhões de euros de empresas e de milionários porque – hélas! – houve um triste erro informático.

Na semana passada um leitor partilhou comigo uma história kafkiana envolvendo o Imposto Único de Circulação (IUC). O leitor emitiu a sua guia de pagamento, largou 133,63€, mas por alguma desatenção informática terá – imagina ele – anulado a guia depois de a ter pago. Erro trágico: 20 dias depois recebeu uma multa de 88,25€ por falta de pagamento do IUC. A prova de que tinha pago não lhe serviu de nada. Para o “sistema”, a guia tinha sido anulada. Preencheu uma reclamação, mas, entretanto, o “sistema” já tinha dado ordem de execução fiscal – mais 150,63€. Total: 372,51€ por ter clicado num sítio errado. Sendo que não há sequer prova de que o tenha feito – é o “sistema” que diz que sim. Ora, este mesmo “sistema”, tão atento ao pobre pagador de IUC e tão poderoso na sua sapiência que nem os hominídeos da Autoridade Tributária podem alterar as suas decisões, está depois espectacularmente distraído quando 10 mil milhões de euros passam à frente do seu nariz a caminho do Panamá. A vigiar o IUC, o “sistema” é uma águia. A vigiar offshores, é mais pitosga do que Mr. Magoo.

Ainda que não tenham existido fugas ao fisco ou falcatruas nas tais 14.484 transferências – o que parece altamente improvável, a avaliar pelas coincidências estatísticas apresentadas por Rocha Andrade –, o simples não-tratamento de 10 mil milhões de euros é uma vergonha exactamente pelas razões apontadas por António Costa: a única forma de manter a moralidade do regime em tempos de vacas magras é ter, pelo menos, a mesma exigência com fortes e fracos. E a única forma de manter a salubridade do capitalismo é não permitir as desigualdades chocantes que as offshores promovem. Acho muito bem que, consoante o talento e os méritos de cada um, haja quem seja mais rico e menos rico. Só que as offshores promovem uma desigualdade inaceitável – são um privilégio só ao alcance de milionários. Como dizia António Lobo Xavier, com alguma graça, não há guichês para offshores. Não há um sítio onde a gente possa ir bater à porta e colocar 1000 euros nas ilhas Caimão, só para experimentar. Ora, se apenas os muito ricos podem pagar menos impostos, isso só pode ser classificado de uma forma: absolutamente escandaloso. E a quem parecer que isto é simples demagogia e populismo, só tenho uma coisa a dizer: quero mais.

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