Gente da minha terra

Nunca tive grandes dúvidas de que Marcelo vai empenhar toda a sua experiência da vida política e pública no esforço de contribuir para dar a volta a um país sem ânimo, sem esperança, sem confiança e sem solidariedade.

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1. Não se deve apenas a Marcelo a extraordinária normalidade com que decorreu a cerimónia de posse no Parlamento. Aqui, normalidade quer dizer que as mais altas figuras do Estado podem envolver-se no debate político, que é a essência da democracia, sem que isso se transforme em guerras pessoais ou decisões enviesadas. Marcelo é assim, a sua popularidade é das coisas mais genuínas que temos visto nos últimos anos (só, talvez, próxima da de Mário Soares), o enorme favor que pode fazer ao país é justamente utilizá-la para derrubar barreiras, chamar à atenção para aquilo que é essencial, acumular credibilidade e confiança suficientes para que as suas iniciativas tenham efeito sobre os decisores políticos. Numa palavra, humanizar a presidência e transformá-la num instrumento fundamental para distinguir aquilo que divide legitimamente as várias propostas políticas e aquilo que é, como ele próprio disse, um rumo estratégico em que todos consigam, de uma maneira ou de outra, remar para o mesmo lado. Em Portugal diríamos que a tarefa é ciclópica porque estamos a anos-luz da cultura política que quase sempre permitiu aos países nórdicos ou à Irlanda vencerem os maiores obstáculos. Mas, com o actual estado do mundo e da Europa, talvez os milagres aconteçam.

Houve, nessa cerimónia, imagens e palavras que nos disseram que isso até pode ser possível, por uma razão simples: a democracia portuguesa venceu todos os obstáculos que lhe foram criados depois da Revolução, entranhou-se no nosso comportamento político, resistiu a todas as crises. É isso que, em primeiro lugar, devemos ao grande ausente da cerimónia de posse de Marcelo, Mário Soares. O novo Presidente disse-o à sua maneira perante os deputados. É nessa democracia, que parece mais resistente aos ventos contrários que sopram noutros países europeus, que ainda podemos acreditar, apesar das notas desagradáveis que alguns dos partidos parlamentares quiseram deixar.  

2. As imagens do Salão Nobre da Assembleia da República com os protagonistas do dia – Marcelo, Cavaco, Ferro e Costa – numa amena e descontraída cavaqueira, fizeram passar diante dos meus olhos o filme dos 40 anos de democracia que já levamos. Não, não se tratou de conversa formal entre gente civilizada. Os gestos, os sorrisos, o modo como a conversa fluía iam muito mais além. Porquê? Porque António Costa, que percebe perfeitamente a diferença entre a pessoa e a instituição que representa, tratou de garantir ao Presidente cessante uma forma digna e justa de abandonar o cargo, ao convidá-lo sem ponta de cinismo a presidir ao último Conselho de Ministros do seu segundo mandato sobre um tema que lhe foi caro, o mar. Cavaco esteve também à altura ao aceitar o convite. Ferro Rodrigues, que infernizou a vida ao então jovem assistente de Finanças (ele e muitos como ele, na crise de 69) e que é hoje a segunda figura do Estado, disse em palavras simples aquilo que é fundamental numa democracia: se os portugueses deram tantas vezes a Cavaco os seus votos, foi por alguma razão que é preciso reconhecer e respeitar. Marcelo fez o resto com a sua natural e irresistível espontaneidade.

José Miguel Júdice disse recentemente que o país tinha a sorte de ter na chefia do Estado e do Governo dois “sobredotados”, ou seja, duas personalidades políticas brilhantes, libertas de quaisquer dependências (o poder económico é-lhes completamente indiferente), suficientemente fortes para não temer entendimentos e cedências sem as quais não vamos conseguir vencer a crise e a desesperança. Têm ainda outra coisa fundamental em comum: rejeitarem a ideia de que são os mercados que mandam e que a política se deve tirar da frente. Marcelo já o disse. António Costa já o fez, com a sua jogada de alto risco de governar apoiado pela extrema-esquerda.

Nem tudo correu na perfeição, mas isso também faz parte da democracia. O Bloco e o PCP fizeram uma triste figura, quando não se levantaram (pelo menos) perante o juramento do novo Presidente. Estão em cima do muro, a ver se caem para um lado ou para o outro. Os seus gestos não ficarão na História. Mais triste foi, no entanto, verificar que o PSD, partido de que Marcelo é fundador, também não resistiu à tentação de amuar. Toda a gente sabe que Marcelo era tudo aquilo que Passos Coelho não queria e que o novo Presidente não lhe deve nada, mesmo nada, pela sua eleição. Fugiu ao confronto, falando antes da cerimónia, e deixou a Luís Montenegro o mais deslocado dos comentários do dia, quase todo dedicado a dizer que quem devia governar o país era o PSD. Finalmente, ficou ao ex-primeiro-ministro muito mal faltar a um almoço em Belém oferecido aos dignitários estrangeiros, alegando ter de ir ali a Oxford, num instantinho, quando toda a gente sabe de cor a data da tomada de posse, que é sempre no mesmo dia. Marcelo não encaixa na direita de Passos, mas encaixa perfeitamente na militância do PSD, para a qual pode falar directamente, seja quem for que estiver no Palacete da Lapa.

3. Nunca tive grandes dúvidas de que Marcelo vai empenhar toda a sua experiência da vida política e pública no esforço de contribuir para dar a volta a um país sem ânimo, sem esperança, sem confiança e sem solidariedade. Sabe que as condições são extremamente difíceis. Mas conta com uma inteligência superior e com a convicção profunda de que não pode falhar. Distribuiu afecto e simpatia nos últimos dias. Mas também não perdeu a oportunidade de definir algumas linhas fundamentais do seu futuro magistério. Decidiu aproveitar a cerimónia de cumprimentos dos embaixadores para fazer um discurso sobre política externa nada formal, definindo as suas grandes linhas e lembrando que elas foram sempre consensuais entre os dois grandes partidos da democracia. Terá uma palavra a dizer nesse domínio, ajudando porventura o Governo a superar as inevitáveis “originalidades” que, mais tarde ou mais cedo, o PC e o Bloco vão utilizar contra a Europa e contra a NATO. Os seus convidados estrangeiros ajudaram a configurar essa forma específica da nossa relação com o mundo, que enunciou: Europa, Aliança Transatlântica, países de língua portuguesa. Com alguns sinais importantes. O Presidente de Moçambique foi convidado e o de Angola não. Sublinhou que a Europa continua a ser a nossa comunidade de origem e de destino e aqui também não há dúvidas ou divergências entre o Presidente e os dois maiores partidos do regime. Mesmo que seja uma Europa tão triste que obriga o presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, a dizer, na nota oficial que anuncia a sua deslocação a Lisboa, que esta não significa maiores facilidades no cumprimento das metas orçamentais e das regras do euro. Uma pessoa lê e não acredita.

4. Dito isto, não é crime nem defeito acreditar que os protagonistas desta nova fase da nossa vida colectiva podem conseguir fazer a diferença. Até a festa organizada por Fernando Medina na Praça do Município, dedicada à gente nova, acabou por ser também um bálsamo para a desesperança. Marcelo trauteou o “E depois do Adeus” como qualquer pessoa da sua geração o teria feito, lembrando a madrugada em que tudo começou. Por mim, ficou-me aquele refrão de Mariza que consegue sempre arrepiar-me, tal a tensão dramática com que ela o canta: “Ó Gente da minha terra”.

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