“Brexit”: as palas ideológicas do Governo português

Que um Governo português, com palas ideológicas e contra os dados da geografia e da história, nos queira acantonar num bairro mediterrânico é drasticamente redutor.

1. Nesta semana, a Holanda, a Irlanda e a Dinamarca reúnem-se na Haia para acertarem uma estratégia quanto ao “Brexit”. Que têm em comum estes três membros da União Europeia? Os três são países médios. Comungam um lendário sentimento nacional, uma nítida vocação atlântica e a ausência de qualquer aspiração continental. Por força da dimensão atlântica, são dos Estados que mais têm a perder com a saída do Reino Unido, sob o dito ponto de vista geopolítico e não apenas económico. Os britânicos, uma histórica superpotência marítima e atlântica, foram sempre a mais importante força de tracção atlântica da UE. E com isso moderavam a deriva nuclearmente continental da Alemanha (virada para o centro, leste e até Norte) e da França (voltada para o centro e Sul, mas com olhos postos no oriente).

Na mesma posição dos três Estados encontram-se Portugal e a Suécia, que são também países médios. Caberia ainda aqui a Bélgica, atlântica, média, sem apetite continental. Dada a sua natureza compósita, a falta de um sentimento nacional e o compromisso com a França e a Alemanha, não está na talvez mesma onda. Seja como for, será sempre bem-vinda a uma rede dos países médios atlânticos.

2. Não falta quem objecte que a França e a Espanha, com longa costa atlântica e com apetência ultramarina, são potências atlânticas. É bem verdade. Mas há três factores distintivos que as apartam nitidamente daquele grupo. Primeiro, a dimensão demográfica que faz de ambas potências de grande porte, com pretensões hegemónicas e de participação num eventual “directório europeu”. Segundo, a vocação continental com um trilho histórico de envolvimento nos equilíbrios continentais. Lembre-se a Espanha dos Habsburgos, simultaneamente potência marítima e continental, ao invés de Portugal, mesmo quando era um império (marítimo). Terceiro, a dimensão mediterrânica da França e da Espanha, que nenhum dos outros Estados citados tem. Nem Portugal tem qualquer costa no Mediterrâneo, apesar da proximidade de Marrocos. Com efeito, nem nos píncaros da sua expansão entrou no mare nostrum: Ceuta, às portas daquele mar, foi a sua possessão mais oriental na costa norte-africana. 

3. Sempre se poderia contra-argumentar que a Inglaterra e o Reino Unido, antes e depois do Império, sempre estiveram imbrincados no equilíbrio do continente. O Império Britânico tinha interesses vitais no Mediterrâneo, de Gibraltar a Chipre e de Malta ao Egipto. Mas esse jogo continental era uma forma preventiva de defesa e uma decorrência natural do estatuto de superpotência naval e política do século XIX. A sua idiossincrasia, porém, era e é essencialmente atlântica e, para lá disso, marítima. 

4. Se a influência cultural nos Países Baixos e na Escandinávia era alemã, em Portugal era francesa. Se a ameaça política para a independência holandesa, sueca e dinamarquesa provinha da Prússia e de uma Alemanha cada vez mais unificada, para Portugal advinha de uma Espanha unificada. A Irlanda, debaixo do jugo britânico, consubstanciava um caso singular, que ainda hoje justifica a sua neutralidade militar e a não pertença à NATO. Neutralidade que, aliás, partilha com a Suécia, Estado em que, por sinal e por receio da Rússia, se iniciou o debate sobre uma eventual adesão à NATO. A verdade é que estes cinco países, para garantirem a sua independência, cultivaram uma relação especial permanente com o Reino Unido, a potência marítima europeia. O caso português, não é necessário encarecê-lo, é temporão e proverbial, seja na segunda cruzada (1147), seja no Tratado de Windsor (1386).

5. Não haverá, por isso, surpresa em afirmar que há interesses comuns muito vincados e densos entre os Estados médios atlânticos na negociação da saída do Reino Unido e na reconfiguração da UE a 27. Tenho advogado aqui insistentemente e de há muitos anos, a necessidade de uma diplomacia intra-europeia de geometria variável. Portugal tem interesses vitais a defender no quadro da chamada cimeira dos países do Sul. Mas tem igualmente interesses essenciais a promover numa cimeira dos países médios atlânticos. Como terá no circuito dos países da coesão ou simplesmente no círculo dos países de média dimensão.

Já aqui tinha sugerido, ainda recentemente e perante o desafio estratégico do “Brexit”, que Portugal promovesse uma cimeira dos Estados médios atlânticos. Ainda neste fim-de-semana, em entrevista ao programa televisivo Europeus, o ministro dos Estrangeiros dinamarquês apelou a um estreitamento de laços com Portugal que completasse os alinhamentos habituais de cada qual com a Alemanha e com a Espanha. Infelizmente, talvez por razões ideológicas, o nosso Governo quer acantonar Portugal à cimeira do Sul. Portugal tem de estar no Sul, mas também de estar no Ocidente ou, se se preferir, no mar. E esta cumplicidade atlântica não é apenas geopolítica. É também decisiva na mudança de percepção económica. Se Portugal cultivar esta afinidade, também no plano económico ampliará as suas capacidades de diálogo e margem de manobra.

Que um Governo português, com palas ideológicas e contra os dados da geografia e da história, nos queira acantonar num bairro mediterrânico é drasticamente redutor. Só uma diplomacia intra-europeia de geometria variável — entre o Sul e o Atlântico, entre a coesão e a dimensão média — poderá tirar Portugal da encruzilhada que nos traz o “Brexit”. Nem todos estarão cientes, mas, tirando a CPLP, Portugal nunca aderiu a uma entidade internacional relevante em que não estivesse o Reino Unido: foi assim com a NATO (1949), com a ONU (1955), com a EFTA (1960), com o Conselho da Europa (1976), com a CEE (1986). Estar integrado na UE sem o Reino Unido constitui um desafio singular e problemático à luz das constantes da nossa política externa. Ainda vamos chorar a nossa não (auto-inclusão) na reunião da Haia. As palas ideológicas estreitam a visão e, por vezes, cegam.

SIM e NÃO

NÃO. Referendo na Turquia. O resultado tangencial que deixa a sociedade dividida e a fraude mais que provável são de mau augúrio. O triunfalismo de Erdogan é já uma má certeza. A instabilidade agudiza-se na fronteira oriental da UE. 

NÃO. Reacção ao referendo turco. Atribuir a saga de Erdogan a uma culpa europeia é falso e masoquista. Um resquício de paternalismo ocidental. Nem tudo o que ocorre no mundo é obra dos “terríveis” europeus, cristãos e brancos.  

Sugerir correcção
Ler 3 comentários