Barbosa de Melo: o “cronopolita” e o “homem-bom”

Mais do que o detentor de um intelecto brilhante e de uma cultura ímpar, Barbosa de Melo era – como sabem todos os que o conheciam – um homem recto, justo e bom.

1. Na quarta-feira, instantes depois do falecimento, chegou-me por voz amiga a notícia da morte de Barbosa de Melo. Uma daquelas mortes que, contra tudo o que seria de esperar, não me deixou triste: deixou-me sereno. Porque a proximidade humana de Barbosa de Melo e a sua fé larga e meiga nos insuflam esse sentimento de paz, de quietude, de serenidade. Quis logo escrever-lhe um texto. Mas já o tinha escrito quando ele perfez 80 anos. E, apesar de tentar, não fui capaz de encontrar outras palavras. Aqui ficam de novo.

2. Recordo-me daquele Outono de 90 em que Barbosa de Melo entrou numa pequena sala da Católica do Porto para dar as aulas da cadeira de Ciências da Administração. E de começar, com o seu jeito afável e paternal, lançando a voz pausada e grave numa toada envolvente e penetrante. Assim que iniciava, tudo se passava como se não houvesse tempo ou houvesse, afinal, todo o tempo do mundo. E, a pretexto das ciências da administração, administrava ciência e administrava-a paciente e sabiamente. Viajava da mais avançada teoria da física ou do último modelo da sociologia das organizações até à pintura mais erudita ou ao versejador mais trivial. Aristóteles cruzava-se com António Aleixo, Boticelli namorava Agustina, Umberto Eco jantava com Fernão Lopes, D.Quixote trabalhava com Enrico Fermi. Lembro-me de ter ouvido dissertar abundantemente sobre os Federalist Papers, a obra de Hannah Arendt ou o pensamento sistémico de Niklas Lhumann – pontos que me haveriam de marcar indelevelmente. Aquelas lições, com o seu inesgotável abrir de janelas e rasgar de varandas, com as passagens directas e discretas dos clássicos da literatura aos mais arraigados costumes populares portugueses, pareciam, por vezes, uma espécie de “radicação” ou “incarnação” humana da internet – uma rede interactiva de conhecimentos “avant la lettre”. E também por aqui intercedia uma profunda provocação ao conservadorismo pedagógico, uma impressionante sintonia com o ar do tempo, uma compreensão consciente do desastre epistemológico e antropológico que representa a especialização e a segmentação excessiva dos saberes. E tudo isto se declinava com uma simplicidade e uma singeleza desconcertantes, a ponto de nos fazer crer que afinal o conhecimento das essências era tangível (Kant, de um modo ou de outro, estava sempre lá…). Aquelas aulas eram, pois, “universidade” na mais pura essência, na melhor senda do que podia e poderá ser um “neo-humanismo”; um humanismo praticado, mas outrossim pensado, intencionado e teorizado.

3. Barbosa de Melo distinguiu-se evidentemente pelos seus escritos, muito dispersos, muito fragmentários, mas de uma profundidade e de uma legibilidade assinaláveis. Vão dos domínios mais técnicos do direito administrativo e constitucional – mas aí sempre com um lastro e um rasto cultural incomparáveis – a temas, na altura, de vanguarda como a concertação social e as matérias comunitárias europeias. Destaco, por se tratar de um clássico da filosofia política portuguesa, o ensaio “Democracia e Utopia”, no qual sobrelevam as suas melhores qualidades. Tornou-se, porém, conhecido do grande público pela mão da actividade política; onde pontificou como um político de excepção, por ser capaz de casar os grilhões da acção política com a preocupação permanente de a manter ligada à produção de pensamento. Essa capacidade esteve sempre presente do tormentoso nascimento do PPD à presidência do parlamento, passando pelo apoio às revisões constitucionais ou pela representação autárquica na sua muito amada Penafiel. O país teria ganhado muito se tivesse querido aproveitar mais e melhor este raro talento. E não pode passar em claro, por ser uma marca inapagável do seu empenhamento cívico e humano, a militância e a reflexão cristã. Poucos intelectuais, fora das vestes eclesiásticas, terão contribuído tão intensa e luminosamente para o debate e o esclarecimento da nossa relação, culturalmente enraizada, com o divino e o religioso.

4. Barbosa de Melo era um viajante. Mas mais do que um andarilho do espaço, era um passageiro do tempo, um navegador dos tempos. Nele, Homero e Einstein dialogavam, Buda e Tocqueville interagiam, o Padre António Vieira e Freud encontravam-se, Gil Vicente e Churchill conheciam-se, porque só o humano lhe interessava. Não era, por isso, um cosmopolita; era mais do que isso, muito mais do que isso: era um “cronopolita” – um cidadão do tempo.

Mas mais do que o detentor de um intelecto brilhante e de uma cultura ímpar, Barbosa de Melo era – como sabem todos os que o conheciam – um homem recto, justo e bom. Se tivesse de escolher um elogio, pegava nessa pista da nossa vida medieval, que ele tão bem conhecia, e escolhia o epíteto de “homem-bom”. Barbosa de Melo era um senador da república, um reputado professor e um sage da melhor linhagem filosófica. Mas, bem mais escasso e bem mais precioso, era um homem bom. Um “homem-bom” de Lagares, Penafiel.  

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