Auto do Diabo

"Deixemos Portugal respirar de tanta sofreguidão acumulada. Não houve afinal de Bruxelas sanções nem de fundos suspensões. Ide, ide, que tenho longa fila de comentadores, analistas e jornalistas para receber”.

Como n’As Barcas de Gil Vicente, o Diabo empoleira-se numa geringonça e decide quem vai para o céu, o inferno ou o purgatório. Ouve o vento murmurar que não houve contra Portugal sanções nem suspensões e sorri, porque todo o ano ouviu dizer o contrário disso. O Diabo, como dizia Giordano Bruno, não é tão mau como o pintam. Mas lobriga já ao longe uma fila de penitentes com quem terá de falar, em diálogos que agora se oferecem aos circunstantes para abertura da época festiva.

Passa Passos Coelho e pergunta, “Porque tardas em chegar, Senhor? Eu que fiz tudo para castigar os pecadores e os gastadores, os relapsos e os precários na fé, por que te vingas de mim assim?”

“Ouvi dizer que ao outro pródigo filho tudo perdoas e admites, que o deixas gastar e reverter, negociar com hereges, ateus e comunistas, e que ainda o retiras do purgatório por défice excessivo. Quero entender, Senhor, por que me castigas.”

Responde-lhe o Diabo: “Não vês, pobre coitado, que a verdade esteve sempre escondida à frente dos teus olhos? Falas de comunistas, e não os vês? Não sabes onde estão? Não os enxergas lá de onde esperas salvação? Como chamavam os comunistas aos seus ministros, não era comissários? E não são eles os mestres do engano, equiparáveis às bruxas? E não vivem as bruxas em Bruxelas? Que te caiam as escamas dos olhos, vê, então!”

“A Comissão a que chamas europeia”, diz o Diabo mostrando os dentes, “não pode ser outra coisa senão um coio de comunistas! Por isso deixam passar os orçamentos e evitam sanções! Pensa um pouco, como se chama o comissário de quem esperavas mão pesada? Não é Moscovici? Pois está mesmo a ver-se – Moscovici da nova Moscovo, que é Bruxelas. É evidente que ele quer salvar o seu Kamarada Kosta das penas do Inferno. Em verdade te digo, até é capaz de ter mandado manipular os números do Eurostat para fazer crer que Portugal está a crescer e o défice a minguar. Bruxelarias!”

Entra em cena, porém, o Professor Louçã e aponta o Diabo a dedo. “Necedades, Diabo! Bem néscio demónio és! Não sabes que Bruxelas é antes coio dos capitalistas? Não te disseram que lá se comem governos de esquerda ao pequeno-almoço? Está escrito que mal um governo tente ser de esquerda lhe fechará Bruxelas a porta e Frankfurt a torneira. Eles estão só a engordar o Costa para melhor o poderem degustar. Está escrito! Fui eu que o escrevi: a próxima crise será definitiva. O euro soçobrará sob o peso das suas próprias contradições. Não pode haver esquerda no projeto europeu.”

O Diabo senta-se na Geringonça e limpa o suor da testa. “Sabem?”, diz ele aos dois, “A Europa é uma barca doida. Se não há esquerda possível neste continente, menos haverá agora para lá do Atlântico ou em cima dos Urais”. E prossegue: “Pode ser que tenham ambos razão. Mas só para o ano. Neste ano que passou, só acertou quem não profetizou.”

“E entretanto aproxima-se o fim-de-semana e o fim do ano; deixemos Portugal respirar de tanta sofreguidão acumulada. Não houve afinal de Bruxelas sanções nem de fundos suspensões. Ide, ide, que tenho longa fila de comentadores, analistas e jornalistas para receber.” 

“Que se leia este auto como souber e explique como puder. De cada um segundo as suas capacidades e a cada um segundo as suas possibilidades: palavra de Diabo, amén.”

Gozai bem o Shabat e o Dia do Senhor. Finis. Laus Deo.

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