Santos Silva não afasta Belém, mas pede “às senhoras expectativas” que deixem de aparecer

O Presidente da Assembleia da República reage a conselho deixado por Ferro Rodrigues sobre presidenciais e fala sobre a Europa e a guerra no Médio Oriente.

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A entrevista com Augusto Santos Silva para o PÚBLICO-Renascença foi gravada na manhã de terça-feira, horas antes de António Costa apresentar a demissão na sequência de buscas ao Ministério do Ambiente e a instalações do gabinete do primeiro-ministro, relacionadas com os negócios do lítio e hidrogénio.

Sobre essas buscas, o presidente da Assembleia da República defendeu que o Ministério Público devia dar mais esclarecimentos públicos dado o "alarme social" causado. Nesta parte, aborda as questões internacionais, defende o secretário-geral da ONU, António Guterres, e fala da popularidade de Marcelo Rebelo de Sousa: “Para se ser estadista e para que as pessoas reconheçam o que fazemos, a última coisa em que devemos pensar é mesmo na popularidade.” Pode ouvir a entrevista Hora da Verdade nesta quinta-feira pelas 23h00.

Há um mês que estamos a ver em directo o conflito israelo-palestiniano, o tema não é consensual no panorama político. No nosso Parlamento, foi de resto difícil encontrar um texto comum. Qual é a posição do presidente da Assembleia da República?
Revejo-me no voto que foi aprovado por amplíssima maioria no Parlamento e que tem cinco pontos essenciais: condenação inequívoca do ataque perpetrado pelo Hamas, que é a raiz de todos estes desenvolvimentos recentes e, portanto, o Hamas é responsável não só por todas as crianças e adultos mortos em Israel, como também por todas as crianças e adultos que agora estão a ser mortos em Gaza.

Segundo, o reconhecimento do direito de defesa de Israel dentro do direito internacional, respeitando, portanto, o direito internacional humanitário, coisa que não tem sucedido. Três, apelo à libertação incondicional dos reféns. Como todos sabemos, se os reféns fossem libertados pelo Hamas, as condições para um cessar-fogo seriam criadas praticamente de imediato. Quatro, apelo à ajuda humanitária à população de Gaza e às condições necessárias para que essa ajuda se faça. Quinto, recordar sempre que a solução deste conflito passa por uma solução política e que a melhor solução disponível é a solução de dois Estados.

É uma ilusão pensar-se que o Hamas, o Hezbollah ou outros movimentos deste quilate podem ser derrotados militarmente apenas. Eles serão derrotados pela política, por uma solução justa para o conflito israelo-palestiniano e por um diálogo político que deve fazer-se entre o Estado de Israel e a Autoridade Palestiniana.

Compreendeu a polémica em torno das declarações do secretário-geral da ONU? Ou acha que Guterres teve pouca diplomacia ou alguma falta de cuidado?
Acho que esteve muito bem. Disse toda a verdade. Um dos problemas deste conflito é que, por vezes, as partes não querem saber toda a verdade, mas só a parte da verdade que lhes convém. E é muito importante que alguém possa dizer toda a verdade, aquela conveniente e aquela inconveniente.

Diria que o ataque do Hamas não veio do nada?
O ataque do Hamas não se faz no vácuo, isto é, é preciso compreender o contexto. Mas como o secretário-geral das Nações Unidas começou por dizer, nenhum contexto justifica a barbaridade do ataque. Na minha opinião, o Hamas é responsável por tudo o que está a acontecer em Israel e em Gaza. Foi o Hamas que desencadeou esta fase do conflito com um ataque que faz lembrar os ataques nazis aos judeus, um ataque deliberadamente conduzido para atacar civis, para chacinar pessoas, para chacinar bebés, para matar bebés diante dos respectivos pais e pais diante dos respectivos filhos.

O Hamas é responsável porque usa a população civil de Gaza, usa os equipamentos sociais e educativos de Gaza como seus escudos, usa as pessoas como escudos humanos porque faz gala de ter o maior número possível de baixas entre a sua população. É responsável porque não protege a população civil de Gaza, porque os túneis em Gaza servem para armas e para militares, mas não servem para abrigos antiaéreos, por exemplo. É responsável porque tem 240 pessoas sequestradas e grande parte delas são civis. É responsável porque se recusa a aceitar a existência do Estado de Israel e se recusa a aceitar a autoridade da Autoridade Palestiniana e faz do terror a sua arma. Essa responsabilidade não pode ser omitida em nenhum momento.

Isso quer dizer que Israel pode ignorar as regras e as condicionantes do direito internacional humanitário? Não, não pode. As regras da guerra são feitas para proteger os civis e não para facilitar a vida aos militares.

Revê-se nas recentes declarações do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no diálogo que manteve com o chefe da missão diplomática da Palestina em Portugal? Diria "não deviam ter começado"?
Cada um tem o seu estilo. Eu sou institucionalista, para o bem e para o mal. Muitos dizem que sou demasiado institucionalista e, portanto, não me compete a mim comentar as palavras do Presidente da República. O Presidente da República, se quiser, pode comentar as minhas palavras.

Foto
Augusto Santos Silva Nuno Ferreira Santos

O Presidente que está a ser contestado por causa da polémica da Palestina e agora pelo tratamento a duas crianças brasileiras. Todos têm o limite da sua popularidade e o Presidente atingiu o seu limite de popularidade. Ou a instituição Presidente está em crise?
Chamo-me Augusto Santos Silva, não Luís Paixão Martins. Não sou consultor de comunicação, sou o objecto. Para se ser estadista e para que as pessoas reconheçam o que fazemos, a última coisa em que devemos pensar é mesmo na popularidade.

Em Junho teremos eleições europeias. Gostava de saber se, na sua perspectiva, o equilíbrio tradicional entre socialistas europeus, Partido Popular Europeu, Verdes e liberais poderá ser quebrado por partidos identitários e nacionalistas que estão a emergir.
Espero que não, mas isso depende justamente das forças políticas europeias. E falo pela minha família. Se os socialistas mobilizarem as pessoas, apresentarem propostas e impedirem que haja uma maioria no Parlamento Europeu que necessite de incluir a extrema-direita europeia e as facções antieuropeias... Porque o meu medo é este, como mostra a Suécia, como mostra a Itália, o Partido Popular Europeu está hoje disponível para alianças com a extrema-direita.

Não está disponível na Alemanha, mas já está disponível na Itália, já está disponível na Suécia, já está disponível na Finlândia e, portanto, acho mesmo indispensável que não haja uma maioria no Parlamento Europeu que inclua apenas o Partido Popular Europeu e os vários grupos a que chamou identitários.

São umas eleições de risco?
Para a Europa, sim, são umas eleições sérias. A Europa passa um momento difícil. Não pode estar dependente do gás russo, de Putin, dos seus amigos, que são muitos, alguns deles hoje disfarçados por essa Europa fora, designadamente na direita. A Europa não pode estar dependente daqueles que não querem a Europa.

Gostava de lhe perguntar também algo em torno de declarações do seu antecessor, Eduardo Ferro Rodrigues. Dizia que, quando se está na função de presidente da Assembleia da República (AR), não faz sentido deixar passar a imagem de que se é candidato a Presidente da República e que depende de si próprio cortar com essa projecção. Augusto Santos Silva vai continuar a manter aberta essa porta de candidatura presidencial?
Estou 100% de acordo com o meu amigo Eduardo Ferro Rodrigues. Só peço um favor: digam-me onde é que essa imagem está a passar para eu ir lá caçá-la, para ir lá cortá-la. Eu sou o primeiro interessado nisso.

Isso quer dizer que está fora de qualquer corrida presidencial?
Não, não foi isso que eu disse. Já muita gente usou esse artifício de dizer "Aqui declaro solenemente que nunca farei A, B, C ou D na minha vida". Normalmente, isso significa depois a necessidade de dar umas cambalhotas porque a realidade não está às nossas ordens. Espero que nas próximas eleições presidenciais a minha área política esteja representada com uma candidatura forte e unida. E darei o meu contributo para isso.

A pergunta é se nesse contributo está a pensar na Presidência da República.
Não, é mesmo presidência da Assembleia da República.

O conselho deixado por Ferro Rodrigues é que devia ter cuidado com as expectativas que estão a ser criadas à sua volta.
Digam-me onde estão essas expectativas que eu vou lá e digo: "Senhoras expectativas, por favor, deixem de aparecer porque estão a induzir em erro as pessoas."

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