O que a UE deve fazer contra os abusos do Estado de direito na Polónia e Hungria

É na diferença entre a letra da lei e a forma como está a ser aplicada que o Fidesz e o PiS têm expandido os seus ataques a organismos democráticos nos seus países, sem receio de repercussões.

Ouça este artigo
00:00
08:48

A captura da comunicação social é uma das grandes causas do retrocesso democrático na Europa Central e Oriental. As eleições do próximo fim-de-semana na Polónia, apesar de um escândalo de "dinheiro em troca de vistos" que está a abalar o Governo em exercício, estão a ser amplamente enquadradas em torno de uma falsa questão de referendo sobre os esforços sugeridos pela UE para instigar a entrada de migrantes ilegais no país. Jarosław Kaczyński, do partido Lei e Justiça (PiS), actualmente no poder, está a inspirar-se na cartilha do seu homólogo húngaro, Viktor Orbán, ao alimentar receios de interferência estrangeira e ao tirar partido do poder informal, o que cria um cenário preocupante para a qualidade das eleições. Tudo isto tem como pano de fundo uma acção judicial em curso, por parte da UE, contra a Polónia pelo seu persistente desrespeito pelas normas democráticas e pela adesão aos valores fundamentais do bloco europeu.

No ano passado, pela primeira vez, a Comissão Europeia accionou o mecanismo de condicionalidade do Estado de Direito contra a Polónia e a Hungria, como resposta ao retrocesso democrático. Este novo instrumento tem por objectivo proteger os interesses orçamentais e financeiros da UE, face a violações do Estado de direito, como irregularidades sistémicas nos contratos públicos.

Actualmente, a UE está a reter cerca de 30 mil milhões de euros em fundos estruturais do Governo de Viktor Orbán, enquanto a Polónia foi impedida de aceder a mais de 35 mil milhões de euros em activos de recuperação relativos à covid-19. Esta situação representa, reconhecidamente, uma escalada de actividade por parte da UE. A determinação em utilizar os fundos como alavanca, apesar de ser um novo desenvolvimento da governação europeia, não é um caminho susceptível de fazer cair o Fidesz ou o PiS.

O motivo reside na falta de vontade política do Conselho Europeu e da Comissão Europeia para fazer cumprir as regras. Tanto o Fidesz de Orbán como o PiS de Kaczyński estão a alterar o campo de actuação de uma forma não codificada para pôr de lado os seus adversários e silenciar opiniões críticas. A magnitude em que ambos os governos enfraqueceram os controlos e minaram as instituições democráticas nos seus países é pouco conhecida por muitos na Europa. E este facto não surpreende, uma vez que nenhum dos dois emprega métodos abertamente opressivos na prossecução dos seus objectivos: em vez disso, ambos instrumentalizam a lei para se adequar aos seus objectivos autoritários.

Cada país consegue estes resultados de formas diferentes. Na Polónia, o clientelismo partidário e o nepotismo são as principais características do clientelismo organizacional do país. Esta situação levou a que um número sem precedentes de familiares e aliados do PiS ocupassem cargos públicos de alto nível de forma pouco transparente; o que, por sua vez, ajudou Kaczyński a manter a sua frágil coligação.

Já na Hungria, os recursos do Estado são distribuídos, em grande medida, de cima para baixo e centrados na rede pessoal de Viktor Orbán. O resultado é a monopolização total do Estado e dos principais sectores económicos. Há uma semelhança entre os dois, na medida em que ambos exercem o poder informalmente através da captura da comunicação social e utilizam indivíduos poderosos e empresas estatais para silenciar ou neutralizar os órgãos de comunicação social independentes do Governo.

O PiS, por exemplo, transformou o organismo público de radiodifusão da Polónia num instrumento de propaganda do Estado, o que foi apoiado pelo gigante petrolífero estatal PKN Orlen, que adquiriu o órgão de comunicação social Polska Press. Como consequência, Daniel Obajtek, um aliado político próximo de Jarosław Kaczyński, controla agora 20 dos 24 jornais regionais da Polónia, mais de 120 revistas locais e 500 portais de notícias online. Estes dois impérios da comunicação social estão a trabalhar em conjunto para fazer passar a ideia de que o principal adversário da oposição nas eleições do próximo mês, Donald Tusk, está a colaborar com a Alemanha e a Rússia para destruir o Estado polaco.

Na Hungria, a situação é ainda pior. Os sites de notícias Origo e Index eram independentes antes de serem adquiridos por interesses pró-Orbán ligados ao empresário Miklós Vaszily. Actualmente, o Origo é pró-Governo e é frequentemente acusado de publicar teorias da conspiração e notícias falsas. O Index, depois de uma mudança de direcção que levou à demissão em massa de grande parte dos seus colaboradores, deixou de criticar abertamente o Governo húngaro. A estação de rádio independente Klubrádió, por seu lado, foi forçada a sair do ar, por motivos duvidosos relacionados com a sua licença, por uma organização estatal repleta de decisores alinhados com o Fidesz.

Também em ambos os países, as autoridades nacionais da concorrência e os conselhos dos órgãos de comunicação social capturados politicamente são utilizados para ampliar a comunicação social pró-Governo – em muitos casos, aprovando fusões e aquisições de modo a favorecer o governo. A formação da Fundação para a Imprensa e os Meios de Comunicação Social da Europa Central (KESMA) na Hungria, em 2018, é um exemplo disso mesmo, tratando-se de um organismo através do qual 476 meios de comunicação social foram transferidos para uma fundação pró-Fidesz. Os que tentam agir sozinhos, ou manter a sua posição, tornaram-se, por sua vez, alvos do governo. Basta perguntar a Zoltán Varga, um dos últimos dirigentes dos meios de comunicação social húngaros, que sofreu um período prolongado de assédio por parte de aliados do primeiro-ministro e que, alegadamente, foi vigiado com o programa de espionagem Pegasus, a mando de funcionários do Governo.

Bruxelas respondeu com o apoio a mudanças institucionais formais nas directivas europeias. E é na diferença entre a letra da lei e a forma como está a ser implementada que o Fidesz e o PiS têm expandido os seus ataques a organismos democráticos independentes nos seus países, sem qualquer receio de repercussões.

Por exemplo, no que diz respeito à regulamentação da comunicação social em ambos os países, a Directiva relativa aos Serviços de Comunicação Social Audiovisual da UE (AVMSD) impõe requisitos formais, que se aplicam a nível pan-europeu. No entanto, estes requisitos são facilmente satisfeitos pelo texto de uma lei nacional bem formulada e, na sua forma actual, assemelham-se efectivamente a um exercício de obedecer às regras impostas sem as questionar – como o demonstra a configuração e o funcionamento do Conselho dos Meios de Comunicação Social húngaro, que, embora formalmente cumpra os requisitos da UE, é capturado e parcial na sua actividade.

Isto significa que, no estado em que as coisas estão, e à medida que as fundações democráticas destes dois países definham, estamos presos num ciclo. Tanto Orbán como Kaczyński estão satisfeitos por manterem a sua fachada de adesão ao quadro do Estado de direito da UE, alegando que estão a cumprir a legislação nacional. No entanto, o processo legislativo, como já foi referido, carece dos princípios básicos da democracia, ao promover a aceleração não transparente da legislação e ao utilizar indevidamente consultas nacionais e referendos tendenciosos para legitimar determinadas medidas.

A posição da UE é, neste sentido, insustentável, na medida em que aborda certos aspectos do poder informal, mas ignora outros. Está a seleccionar as opções que acha mais convenientes quando deveria estar a responder em termos absolutos – e não pode, de modo razoável, afirmar que está a envidar todos os esforços para garantir uma uniformização de valores em todo o bloco europeu.

Muitos em Bruxelas argumentarão que a UE não tem poderes suficientes para contrariar o retrocesso democrático. Acontece que isso não corresponde à verdade. Tem toda uma série de instrumentos à sua disposição e não precisa de se envolver num perpétuo "ciclo de criação de instrumentos", de cada vez que há uma situação problemática num Estado-membro infractor. A Comissão está a criar os seus próprios problemas ao permitir que um sistema em rede de desdemocratização floresça na Polónia e na Hungria, bem como ao manter a sua abordagem actual, defeituosa, de disponibilizar fundos em pequenas quantias de cada vez mediante o cumprimento de condições específicas. Isto permite que tanto o PiS como o Fidesz resolvam superficialmente os problemas, enquanto os sistemas informais de poder ficam sem controlo e livres para manter o seu ataque ao tecido democrático de cada país.

Por conseguinte, é necessária uma abordagem multifacetada e sustentada por parte da Comissão Europeia para que a Polónia e a Hungria possam sair da beira do abismo. Esta abordagem deve incluir uma ação judicial imediata e, se necessário, prolongada contra os governos de ambos os países; uma suspensão indefinida dos fundos da UE; e uma aplicação mais eficaz da condicionalidade. No contexto da captura da comunicação social e do quadro regulamentar da UE, a Comissão deve ser mais específica na definição de poder informal. E deve utilizar as suas competências muito claras em matéria de direito da concorrência e de auxílios estatais para intervir, em grande escala, com processos por infracção.

A UE não pode revelar-se de meios-termos nos seus compromissos com governos que não têm qualquer intenção de respeitar as regras do bloco europeu. Tem de mostrar-se mais firme e utilizar todos os instrumentos à sua disposição se quiser salvaguardar a democracia destes dois países.

Edit Zgut-Przybylska é investigadora visitante do Instituto para a Democracia da Universidade Centro-Europeia (CEU, na sigla em inglês) e investigadora do IFIS na Academia Polaca de Ciências

Tradução de Nelson Filipe

Sugerir correcção
Comentar