Como falar com os nossos filhos sobre guerras e tragédias?

Não vale de nada ter um assomo de solidariedade no Natal e passar o resto do ano a protestar contra o facto de, por exemplo, Portugal acolher muitos refugiados.

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Eduardo Moser/sandradesign
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Querida Mãe,

Esta fotografia é da nossa Martinha. Uma miúda que tem a sorte de ter nascido neste país (que, com todos os seus defeitos, é o melhor do mundo) e que, nos seus 18 meses (da fotografia), nunca viu ninguém a morrer, nunca teve que passar dias e dias à chuva e ao vento, nos braços de um irmão mais velho (mas, ainda assim, uma criança), a quem os pais a confiaram na esperança de que chegue a um lugar onde possa sobreviver.

Nunca sentiu fome. Nem nenhum medo em especial. E aqui está: a ver carneirinhos.

Mas não foi isso que vi quando olhei pela primeira vez para esta fotografia e, por isso, a guardei. Para me lembrar que não, que a minha querida filha não está num campo de refugiados, mas podia estar. E que muitas outras filhas/os, tão queridas/os como a minha estão.

E só posso fazer duas coisas sobre isso: estar grata por não ser a minha filha (dando valor ao que tenho) e fazer tudo ao meu alcance para ajudar as/os que estão lá, pressionando os nossos governos para que sejam solidários e usando o nosso voto para promover políticas que permitam que, um dia, todas estas crianças estejam “só a contar carneirinhos”.

Mas queria a sua opinião; como falamos com os nossos filhos sobre guerras e tragédias, sem os afogarmos no terror e num paralisante sentimento de impotência?


Querida Ana,

Obrigada pela fotografia e pelo que escreveste. Ainda bem que essa rede é a de um portão, e não a de uma barreira intransponível.

Nascer deste lado do mundo é uma sorte, mas também uma responsabilidade acrescida. Temos de educar os nossos filhos e netos com essa consciência, educá-los para acolherem em lugar de rejeitarem, para confiarem em lugar de deixarem que o medo do desconhecido e dos desconhecidos os leve a marginalizar os mais frágeis. E isso, Ana, só se faz pelo exemplo. Vão fazer como nos veem fazer.

Temos de ser muito consistentes nas palavras e nos atos, e ter perfeita consciência de que eles são pequenos, mas não são estúpidos, e percebem bem os nossos gestos racistas ou intolerantes, mesmo que disfarçados.

Não vale de nada ter um assomo de solidariedade no Natal e passar o resto do ano a protestar contra o facto de, por exemplo, Portugal acolher muitos refugiados.

Mas as guerras explicam-se a partir de casos do dia a dia, de preferência aqueles que conhecem de perto, como os que acontecem no recreio da escola. E é a partir das batalhas campais com os irmãos e com os amigos que se ensina a negociar a paz.

É nisto que temos de investir.

É claro que temos de responder a todas as suas perguntas sobre as guerras e as tragédias do mundo lá fora, mas protegendo-os de “telejornais” em que as catástrofes se sucedem em catadupa, dando a impressão de que está tudo perdido. Porque, repara, Ana: anunciar a derrota certa é um incentivo a cruzar os braços, a um lançar as culpas para a geração anterior e a ficar sentado e deprimido à espera do Apocalipse.

Não queremos jovens sentados. E, para isso, é preciso que, como a Marta, se maravilhem mais com as ovelhas do que com os lobos, com as coisas boas do que com as más. Só sabendo a diferença, lutarão pelo que está certo.

Beijinhos.


Com o Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Depois das férias de Verão de 2023, estão de volta com uma nova temporada repleta de birras.

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