Entre a “protecção” e a “autonomia”: AR divide-se sobre violação como crime público

Debate no Parlamento polarizou-se, com os partidos a favor de tornar a violação um crime público a pedirem mais “protecção” para as vítimas e os restantes a apelarem à sua “autonomia”.

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Manifestação contra a cultura da violação Fernando Veludo

O Parlamento voltou a debater se a violação, a coacção sexual e o abuso sexual das pessoas incapazes de resistência devem tornar-se um crime público, por proposta do Chega, Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda e PAN. E voltou a dividir-se sobre o tema, embora a maioria dos deputados considere que deve manter-se semipúblico. O PS, ainda que com divisões dentro da bancada, apresentou um projecto, o único com viabilização assegurada, que não toca na natureza do crime, mas permite às vítimas apresentarem queixa no prazo de um ano, em vez dos actuais seis meses.

Em sede de especialidade os socialistas deverão manter este como um crime semipúblico. A deputada socialista Cláudia Santos sustentou que continue a ser um crime semipúblico, podendo ser investigado sem necessidade de queixa quando se tratar de vítima vulnerável.

No debate na Assembleia da República (AR), Joana Mortágua do BE defendeu que o "atentando à dignidade humana das mulheres vítimas de violação diz respeito a toda a sociedade". "Não podemos continuar a dizer às vítimas que a responsabilidade é só delas enquanto os agressores são protegidos pela estigmatização social e culpabilização das vítimas", disse, lembrando que "a maioria das mulheres não faz queixa por medo, descrédito do sistema da justiça e vergonha".

Pedro Pinto, do Chega, defendeu que se retire o "ónus da vítima" e que se melhore o sistema judicial, para acabar com a "vergonha" e com o "estigma" que as vítimas enfrentam. Acusou ainda o PS de "teimosia" em aprovar as propostas da oposição, embora saudando o "pequeno passo" do aumento do prazo de denúncia que, ainda assim, considerou insuficiente.

Pelo PAN, Inês Sousa Real também criticou o PS por apresentar uma iniciativa que "peca por tardia" e um aumento do prazo de denúncia "insuficiente". Mas centrou a sua intervenção no facto de a manutenção do crime semipúblico perpetuar uma "sociedade machista e patriarcal" que "não protege as vítimas".

Patrícia Gilvaz, da IL, considerou que tornar a violação um crime público seria uma forma de "não deixar a vítima sozinha", sem colocar em causa a sua "intimidade", mas defendendo a sua "autodeterminação sexual", e responsabilizou o actual regime pelo aumento das violações em Portugal.

Rui Tavares também se colocou do lado dos partidos a favor de consagrar a violação como crime público, sublinhando que existe uma "responsabilidade colectiva em relação às vítimas futuras". O deputado único do Livre considera que não é por a lei "dizer que respeita a vontade da vítima" que essa vontade é respeitada e que a definição legal do consentimento deve ser revista.

PS, PSD e PCP falam em "autonomia"

Pelo PS, Cláudia Santos rejeitou que o aumento de denúncias signifique mais condenações, defendendo que resultaria em mais absolvições por fazer depender da vítima a prova. E considerou que as propostas da oposição reproduzem "paternalismos", nomeadamente, o "jurídico-penal", que "retira direitos às vítimas com o argumento de que o Estado sabe o que é melhor para elas".

Mónica Quintela, do PSD, por sua vez, defendeu que a violação continue como crime semipúblico, sustentando que não se pode "obrigar uma vítima a sujeitar-se a um processo criminal que não quer", já que isso não respeitaria a "autonomia da vontade da vítima" e os "bens jurídicos tutelados da liberdade e autodeterminação sexual".

Alma Rivera, do PCP, declarou que tornar a violação um crime público iria levar ao “alargamento do prazo de prescrição” do crime e tornar a “investigação obrigatória”, apesar do “interesse da vítima”, não resolvendo “problemas mais profundos”. A comunista considerou que se deve defender a “autonomia” da vítima, sendo necessário mais “apoio à vítima”.

Todos os projectos da oposição, à excepção da iniciativa do BE, defendem que a vítima possa requerer a suspensão provisória do processo criminal, o que mereceu críticas aos bloquistas até por parte dos partidos a favor de alterar a natureza do crime de violação. Deputados votam nesta sexta-feira os projectos.

O debate foi agendado a reboque de uma petição com mais de 107 mil assinaturas intitulada “Urgência em legislar no sentido da conversão do crime de violação em crime público”, subscrita por figuras como Francisca Magalhães Barros, Manuela Eanes, Teresa Leal Coelho, Joana Mortágua, Catarina Furtado, Nuno Markl, Carolina Deslandes, Teresa Féria ou Teresa Pizarro Beleza.

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