Abusos sexuais na Igreja: o princípio do fim das trevas

A Comissão abriu uma caixa de Pandora com a blindagem do rigor e o método da ciência. O que se sabia acabou de ser exposto de forma cruel, mas incontornável. Uma dádiva de luz à sociedade portuguesa.

A mais árdua tarefa que a Comissão para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja tinha entre mãos era a de convencer o país de que o silêncio dos confessionários, dos claustros e dos arquivos não seria protegido. Que a verdade seria revelada até onde fosse possível. Que a conivência das altas esferas das instituições católicas seria abolida. Que, em síntese, houvesse finalmente uma réstia de luz, de verdade e de justiça não apenas para se apontarem criminosos, como para resgatar um pouco do sofrimento humano das vítimas.

A Comissão liderada por Pedro Strecht foi capaz de vencer os desafios. E só o conseguiu fazer porque a Igreja percebeu finalmente que o longo reinado alicerçado no poder que tolera o abuso e o silêncio cúmplice acabou. Os factos e a crueza com que foram expostos a uma fila de altos dignitários da Igreja revelam ao mesmo tempo compromisso, coragem e anuência dos bispos. O mundo mudou nesta manhã de segunda-feira.

Estão, portanto, de parabéns a Comissão e a Igreja, ainda que seja justo designar como inspiradores deste momento libertador o trabalho que outras comissões de verdade fizeram em outros países ou a palavra exigente e justa do Papa Francisco. E estão ainda mais de parabéns porque durante muito tempo era difícil acreditar que a preocupação em limpar as teias de aranha dos armários e tirar o lixo debaixo do tapete pudesse acontecer em igrejas como as de Portugal – ou da Espanha.

O simples facto de a reunião desta segunda-feira na Fundação Gulbenkian ter acontecido é apenas a primeira prova do caminho extraordinário que foi feito. Ainda só temos os números “absolutamente mínimos” das vítimas, ainda falta analisar com profundidade os arquivos diocesanos, ainda há muitas pessoas aterrorizadas com o passado, que preferem o silêncio ao drama de reviver as memórias. Ainda não sabemos o que vai fazer a Igreja com tanta informação desconfortável, seja em relação à indemnização das vítimas, seja para com a punição dos abusadores que permanecem no activo. Seja como for, esta segunda-feira é um grande dia para o país.

É-o pela verdade e pela sua natureza libertadora. Durante toda a vida fomo-nos habituando à inevitabilidade dos sacerdotes conspícuos e inimputáveis, à resignação de que a violência que perpetravam era apenas mais um dogma que nem a justiça civil nem a eclesiástica podiam ou sequer queriam travar. Enquanto sociedade, atravessámos décadas de culpa pela resignação. As violências de padres indignos ou catequistas perversos sabiam-se. Mas acabavam diluídas numa cultura reverencial e temerosa na qual a fé e a igreja funcionavam como poderes de retaliação. Era difícil acreditar que algo mudasse.

O relatório da Comissão é arrepiador, mas não é surpreendente. O seu valor mede-se não tanto pelos casos detectados ou as histórias concretas que captaram, antes, e fundamentalmente, por simbolizar o fim das trevas. As resistências das alas ultramontanas da Igreja foram derrotadas. As cúpulas católicas entraram finalmente no Estado de Direito, no tempo da verdade e da igualdade de todos perante a lei.

A Comissão abriu uma caixa de Pandora com a blindagem do rigor e o método da ciência. O que há muito se sabia acabou de ser exposto de forma cruel, mas incontornável. Fez uma dádiva de luz à sociedade portuguesa e deu um bálsamo de confiança para a elite mais progressista da Igreja se possa libertar do seu lado violento e sórdido com a qual pactuou tempo de mais. Como disse Pedro Strecht no final, “a dor da verdade dói, mas só ela liberta”.

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