Abusos sexuais na Igreja: anos de investigações, uma história que se repete

De Espanha à Austrália, são milhares os testemunhos de abusos sexuais no seio da Igreja Católica que foram revelados ao longo dos últimos anos. Relatório português é apresentado nesta segunda-feira.

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O cerco aos membros da Igreja Católica que cometeram crimes de abuso sexual aperta-se Cathal McNaughton/ Reuters

O relatório oficial sobre os casos de abuso sexual no seio da Igreja Católica portuguesa será conhecido nesta segunda-feira — o culminar de um ano de trabalho de uma comissão de peritos independentes, que, em Outubro de 2022, já tinha conseguido validar 424 testemunhos. A maioria dos crimes, contudo, já tinha prescrito.

Esta é uma história que se repetiu em vários pontos do mundo. De Espanha à Austrália, o cerco aos membros da Igreja Católica que cometeram crimes de abuso sexual aperta-se: há cada vez mais comissões a investigar e mais casos a verem a luz do dia.

Espanha: jornal dá conta de 1741 vítimas. Provedor de Justiça investiga

A iniciativa partiu de um grupo de jornalistas. Em Outubro de 2018, o El País abriu uma caixa de email específica para receber denúncias de abusos sexuais na Igreja espanhola. O site da página especial, criada para denunciar estes casos, tem à cabeça um contador: 970 casos conhecidos e 1741 vítimas.

O El País entregou, em dois momentos distintos, dois relatórios com a informação que lhe foi chegando. O primeiro foi entregue em Dezembro de 2021 ao Papa e à Conferência Episcopal Espanhola com 251 casos inéditos. Em 2022, seguiu um novo relatório para a Conferência Episcopal com mais 278 testemunhos e 244 visados.

Em Março de 2022, o Congresso abriu um inquérito parlamentar sobre o assunto e Pedro Sánchez deu ao provedor de Justiça a tarefa de começar o relatório sobre os casos de pedofilia na Igreja Católica. É a primeira investigação deste tipo levada a cabo por peritos independentes em Espanha.

França: mais de 210 mil vítimas da “indiferença cruel” da Igreja desde 1950

Entre 1950 e 2020, cerca de 216 mil crianças foram vítimas de abuso em França – a maioria rapazes, com idades entre os 10 ce os 13 anos – enquanto estavam sob a responsabilidade directa da Igreja Católica francesa. Estas conclusões foram o culminar de dois anos e meio de investigação, cujo relatório final, publicado em 2021, contava com quase 2500 páginas.

O número de membros da hierarquia da Igreja que cometeram estes crimes cifra-se entre os 2900 e os 3200, de acordo com uma estimativa feita com base nos testemunhos recolhidos. No relatório, conclui-se que a Igreja não só não foi capaz de prevenir o abuso como muitas vezes colocou, com conhecimento, crianças em contacto com predadores.

Jean-Marc Sauvé, coordenador da investigação, fala de “encobrimento institucional”. Até aos anos 2000, a Igreja mostrou “indiferença profunda, total e até cruel”: “Não se acreditava nas vítimas, não se escutava.”

Em Novembro de 2022, o cardeal Jean-Pierre Ricard, que foi arcebispo de Bordéus e presidente da Conferência Episcopal Francesa, chocou o clero francês ao admitir publicamente ter abusado de uma menor.

Alemanha: abusos e encobrimento, uma história que se repete

Em Setembro de 2018, a Igreja Católica alemã dava conta de 3677 crianças vítimas de abusos sexuais entre 1946 e 2014, por pelo menos 1670 clérigos. Já nessa altura se falava deste número como “a ponta do icebergue”, e os anos deram razão àquela afirmação.

Em 2021, tornavam-se conhecidos 300 casos de crianças com menos de 14 anos vítimas de abuso por membros do clero em Colónia. Em 2022, chegava a notícia de que padres católicos abusaram de pelo menos 600 crianças — a maioria rapazes, com idades entre os 10 e os 14 anos — entre 1945 e 2020 na diocese de Münster.

Frequentemente, as denúncias não foram levadas a sério. Tal como noutros pontos do mundo, o modus operandi era deslocar o padre ou membro do clero acusado para outra localidade, sem explicar a razão.

Austrália: George Pell, a mais alta figura da Igreja a ser julgada por abuso sexual

George Pell, que em 2018 era tesoureiro do Vaticano e ex-conselheiro do Papa Francisco, foi a mais alta figura da Igreja a ser levada a julgamento por crimes de abuso sexual. Esses abusos ocorreram 20 anos antes, na Catedral de S. Patrício, em Melbourne – numa altura em que as duas vítimas, dois rapazes, faziam parte do coro da igreja e tinham cerca de 13 anos.

A batalha legal durou cinco anos. Primeiro, foi condenado em 2019 por cinco acusações de abuso sexual, incluindo uma de penetração oral. O recurso confirmou a condenação, mas o Supremo Tribunal absolveu-o em 2020, alegando que “a prova não estabeleceu culpa com o nível de evidência exigido” – uma decisão que a Santa Sé viu com bons olhos.

O cardeal morreu em Janeiro de 2023, aos 81 anos. Centenas de pessoas — vítimas e familiares — protestaram em frente à catedral onde decorreu o funeral.

Pensilvânia, EUA: mais de 300 padres acusados, mais de mil vítimas

As mil páginas de relatório compilam as conclusões de mais de dois anos de investigação e relatam casos de abusos perpetrados por mais de 300 padres contra mais de mil vítimas de abuso sexual identificáveis, ao longo de sete décadas, em seis das oito dioceses católicas deste estado norte-americano (Allentown, Erie, Greensburg, Harrisburg, Pittsburgh e Scranton), que a Igreja tentou encobrir.

Durante anos, bispos e padres persuadiram as vítimas a não denunciarem os crimes e as autoridades a não os investigarem, revela o documento.

Washington: episódio com 45 anos fez cair antigo arcebispo

As primeiras acusações contra o cardeal norte-americano Theodore McCarrick, 92 anos, ex-arcebispo de Washington, surgiram em 2018, mas remontam a factos que se passaram há 45 anos. Um homem revelou ter sido alvo de abusos sexuais pelo padre quando era criança e dois outros homens acusaram McCarrick de os ter obrigado a dormir com ele quando eram seminaristas.

McCarrick foi investigado pelo Vaticano e foi considerado culpado pelos crimes. Em 2019, tornou-se o primeiro cardeal a ser destituído do sacerdócio pelo Papa.

Chile: a rede que encobriu Fernando Karadima

As primeiras acusações datam de 1984, mas foram ignoradas até 2010, quando quatro vítimas decidiram tornar públicas as acusações do caso chileno.

O resultado foram 34 demissões, apresentadas ao Vaticano no início de 2018. Porém, todas as peças da história iam dar ao mesmo nome: Fernando Karadima, condenado em 2011 pela justiça canónica a uma vida de reclusão e penitência e expulso do sacerdócio por ter abusado sexualmente de pelo menos quatro jovens, todos menores à data dos acontecimentos, nos anos 1980, quando era pastor da igreja El Bosque, em Santiago.

O caso foi encoberto por uma rede de padres e bispos associados a Karadima durante décadas. Apesar da condenação, os crimes prescreveram sem que o padre tivesse cumprido pena. Fernando Karadima morreu em 2021.

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Manifestantes no Vaticano a protestar pelo fim dos abusos sexuais na Igreja DR

Boston: a investigação jornalística que conquistou um Pulitzer

A investigação deste caso valeu ao diário norte-americano Boston Globe um Pulitzer pela “cobertura corajosa e compreensiva do abuso sexual por parte de padres, num esforço para acabar com o secretismo, provocando a reacção local, nacional e internacional e produzindo mudanças na Igreja Católica Romana”, defendeu o júri em 2003.

Em 2002, o jornal virou os holofotes para o escândalo de abuso sexual na paróquia de Boston, encoberto durante décadas, que envolveu o padre John Geoghan, acusado de abusar de dezenas de crianças. O caso desencadeou uma avalanche de acusações, com centenas de norte-americanos a afirmar terem sido vítimas de abuso por padres católicos.

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