É possível prever um sismo? E qual é o aspecto de uma falha?

Imagens de drones mostram como a ruptura da crosta chegou à superfície no sismo de segunda-feira. Essa fissura, que originou o sismo que abalou a Turquia e a Síria, é uma cicatriz bem visível.

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Vista por drone da ruptura à superfície da falha no sismo na Turquia de 6 de Fevereiro Issam Abdall/Reuters

O balanço do sismo ultrapassa já as 24 mil mortes na Turquia e na Síria, os países atingidos pelo terramoto da madrugada de segunda-feira. Teme-se que mais de 100 mil pessoas pudessem estar debaixo dos escombros, só na Turquia.

Seria possível prever o sismo e, assim, evitar esta catástrofe natural? O sismo atingiu 7,8 graus de magnitude – é isso muito? Vejamos alguns factos básicos, e outros nem tanto, sobre a ciência dos sismos.

Onde foi a ruptura da falha que originou o sismo da Turquia?

A ruptura deu-se na terminação da zona da falha do Leste da Anatólia – ou falha da Anatólia Oriental – já a confluir com a zona da falha do Mar Morto, no Sudeste da Turquia, perto da fronteira com a Síria.

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Atendendo à magnitude do sismo de 6 de Fevereiro – que atingiu 7,8 graus –, é possível estimar que a crosta terrestre se rompeu ao longo de mais de 200 quilómetros de comprimento. Ou seja, para haver a libertação de energia capaz de originar um sismo de 7,8 graus na falha do Leste da Anatólia – com 700 quilómetros de comprimento – a crosta terrestre teve de se romper numa extensão de mais de 200 quilómetros. Para já, é uma estimativa.

Trocando por miúdos, o que quer mesmo dizer a “ruptura de uma falha”?

As falhas tectónicas movem-se. É esse movimento que liberta energia e conduz àquilo a que chamamos um “sismo”. A seguir a um sismo, a falha “fica fechada”, para utilizar a gíria dos geocientistas. Isto quer dizer que já não se move. “É como se não houvesse uma falha. A ruptura mantém-se, mas não se mexe”, explica João Duarte, geólogo da Faculdade de Ciências de Lisboa.

“Ao longo de algum tempo, as tensões tectónicas vão-se acumulando naquela zona. A determinada altura, as rochas deixam de poder acomodar essas tensões e vai-se dar um sismo para libertar essas tensões”, continua o geólogo. O movimento da falha é feito aos saltos, portanto.

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Destruição, vista por drone, em Kahramanmaras, uma das cidades mais atingidas pelos sismos de 6 de Fevereiro de 2023 na Turquia EPA/ABIR SULTAN

Como a zona onde existe uma falha é um ponto fraco, a tendência é para que a ruptura da crosta terrestre ocorra outra vez nessa zona. Mas sendo já uma falha, porque se diz então que se rompeu? Diz-se que a falha se rompeu porque, com a passagem do tempo, é como se ficasse calcinada. “Fecha-se, tende a solidificar”, explica João Duarte. A ruptura da crosta que origina um sismo pode então acontecer na mesma zona que já se tinha rompido antes. “É como um prato partido que se colou. Se se deixar cair o prato, provavelmente ele parte-se outra vez no sítio onde estava colado.”

Como se sabe com exactidão qual o troço da falha que se moveu num sismo?

Através do epicentro de um sismo principal e das réplicas que se lhe seguem, os cientistas podem traçar um padrão de sismicidade que permite identificar exactamente que troço da falha é que se mexeu. O epicentro do sismo principal, de 7,8 graus, foi a 26 quilómetros a leste da cidade de Nurdağı, na província turca de Gaziantep. Várias horas depois houve outro sismo de 7,5 graus com epicentro no ramo norte da falha do Leste da Anatólia.

As réplicas permitem um trabalho de detective aos geocientistas da seguinte forma: “Todo o segmento da falha que se mexeu começa a ajustar-se ao novo campo de tensões. As réplicas correspondem a esse ajustamento”, explica João Duarte. No mapa, as réplicas vão surgir como uma nuvem alongada de pontinhos – em forma de charuto – à volta do troço da falha que se mexeu.

Se por agora se estima que a ruptura da crosta envolvida no sismo da Turquia é de 200 quilómetros de extensão, no futuro ter-se-á então um número mais exacto do tamanho da ruptura. Da mesma forma, as réplicas também vão permitir determinar a extensão da ruptura em profundidade. O ponto em que se iniciou a ruptura da crosta em profundidade no sismo da Turquia – esse ponto designa-se por “hipocentro” – situa-se por volta dos 17 quilómetros. Já agora, o epicentro é o ponto projectado à superfície do local de início do sismo em profundidade.

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A destruição após o sismo em Antáquia, província de Hatay, Turquia EPA/João Relvas

Partindo do hipocentro, a falha tectónica rompe-se para cima, para baixo e para os lados. Estima-se que a ruptura do sismo da Turquia tenha chegado aos 30 quilómetros de profundidade. A partir da magnitude do sismo principal e do hipocentro das réplicas, poderá então também vir a ter-se uma imagem mais refinada da profundidade máxima da ruptura da falha. Se há uma réplica iniciada a 30 quilómetros de profundidade, é porque a falha se mexeu aí e está a ajustar-se.

Como já estamos a ver pela divulgação de várias imagens, parte da ruptura da falha em mais de 200 quilómetros de comprimento é bem observável à superfície. Uma ruptura superficial só acontece em sismos de magnitude acima de seis ou sete graus. “Quando sentimos um sismo em Portugal de magnitude três ou quatro, não vemos a falha a romper-se à superfície. O sismo não é suficientemente grande para ter ruptura superficial”, diz-nos João Duarte.

Qual é o aspecto de uma falha?

Nada melhor do que ver com os próprios olhos como é uma falha tectónica, uma vez que estão a ser partilhadas imagens da ruptura superficial verificada no sismo da Turquia, algumas pela própria comunidade científica. Nestas imagens incluem-se desde fotografias até imagens de drones, que nos levam numa viagem aérea ao longo da ruptura superficial.

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Foto partilhada pelo geólogo turco Hasan Sozbilir, que mostra uma estrada atravessada pela ruptura superficial do sismo e que a deslocou lateralmente três metros Hasan Sozbilir

Esta cicatriz na superfície da Terra atravessa terrenos agrícolas, galga montes, corta estradas ao meio e por aí fora. Numa das muitas fotografias vemos, por exemplo, uma estrada cortada ao meio pela falha: um troço ficou deslocado lateralmente em relação ao outro do lado de lá do corte cerca de três metros, assinala o geólogo português. Mais do que uma simples estrada atravessada pelo rompimento superficial da crosta, o que essa imagem evidencia é que, em média, ao longo de 200 quilómetros de comprimento e 30 de profundidade houve um deslocamento lateral da crosta em três metros. “É brutal.”

Mas se esta ruptura da falha tectónica na Turquia é fresca de alguns dias apenas, outras há que constituem cicatrizes de sismos antigos ainda bem visíveis. Entre estas últimas inclui-se a famosa falha de Santo André, na Califórnia. Em Portugal, também temos vários exemplos da “expressão morfológica à superfície” de falhas tectónicas, assim lhe chama João Duarte. A falha do Vale Inferior do Tejo, a falha da Vilariça, a falha do Gerês… Elas podem agora estar camufladas pela ocupação de terrenos agrícolas, por ervas ou por construções.

Ter uma magnitude de sete graus ou de 7,8 é muito diferente?

Sim, é mesmo muito diferente. Um sismo de 7,8 graus é 15 vezes mais forte em termos de libertação de energia do que um sismo de sete graus, destaca João Duarte. Um sismo de oito graus em relação a um de sete graus é 31 vezes mais forte. E um sismo de 7,8 graus em relação a um de três graus? É dez milhões de vezes mais forte. “O que aconteceu na Turquia é dez milhões de vezes mais forte em termos de libertação de energia do que os sismos que sentimos com alguma regularidade no território nacional.”

É possível prever um sismo?

O dia e a hora, não. Com esse nível de precisão, não se consegue dizer prever um sismo. “Para fazer uma boa previsão, precisamos de saber onde vai ocorrer um sismo, a magnitude e quando. As duas primeiras coisas que conseguimos dizer com alguma exactidão: conseguimos dizer que ao largo da costa portuguesa é muito provável que vá acontecer [um sismo de] 8,7 [graus de magnitude]. O problema é dizer quando, que é o que toda a gente quer saber”, explica João Duarte, referindo-se implicitamente ao sismo de 1755 ao largo da costa portuguesa. É sempre uma previsão de longa ou média duração.

“Os sistemas que geram os sismos são muito complexos, o que faz com que o processo de geração de sismos seja semicaótico”, explica ainda o geólogo. Por causa dessa complexidade, é impossível fazer previsões a curto prazo para um sismo.

“Na meteorologia, o que se diz é que no dia tal há muito ou pouca probabilidade de chover, mas não se diz em que minuto exacto vai chover. E levamos o chapéu-de-chuva para a rua. Nos sismos é um bocadinho a mesma coisa: sabemos que vai haver um sismo grande e onde. Devíamos tomar medidas de prevenção sem precisar de saber exactamente quando.”

E um dia, será possível prever sismos a curto prazo?

Se há cientistas que consideram que dificilmente se conseguirá prever sismos a curto prazo, outros, como é o caso de João Duarte, estão mais optimistas e pensam que o desenvolvimento da própria ciência e da inteligência artificial permitirá um dia fazer previsões de curta duração. “Nos instantes antes de um sismo – ou mesmo horas ou dias – podem ocorrer determinados eventos com determinados padrões que podem ajudar na previsão. Mas será sempre uma probabilidade”, acautela o investigador.

“Para prever um sismo, precisaríamos de saber o estado de tensão das porções de crosta com elevada precisão. Para isso, era preciso ter instrumentos (sensores) espalhados por toda a superfície da Terra e no interior da crosta. Ora isso seria virtualmente impossível.” Actualmente, salienta ainda o investigador, há muito poucos sismómetros no oceano, que ocupa 70% da superfície do planeta, pelo que logo aqui há um grande vazio sobre o estado de tensão da crosta terrestre com elevada precisão.

Mesmo em sítios onde há muitos sensores, é complicado ter todos os dados que permitissem a previsão de um sismo a curto prazo, indicando não só o local e a magnitude, como o tal “quando”. “Há certas falhas, como a falha de Santo André, que têm muitos sensores. Mas é sempre muito difícil fazer a monitorização em profundidade, especialmente se as falhas estiverem milhares de metros debaixo de água e dezenas de quilómetros no interior da Terra.”

Ter mais sensores no mar pode ajudar a preencher as lacunas de conhecimento, mas não, a solução não passará por encher o oceano de instrumentos. De novo, a comparação com a meteorologia. “Temos muitos satélites, mas não podemos cobrir o céu e toda a atmosfera com satélites. Seria um empreendimento gigantesco e sem sentido. O que fazemos é uma certa amostragem (observações) e tentamos completar o conhecimento com modelos computacionais. “É aqui que desenvolvimentos na área da big data e de inteligência artificial podem vir a ser muito importantes. Mas para isso é preciso muito investimento na investigação nesta área.”

Com o desenvolvimento da capacidade de analisar quantidades gigantescas de dados e inteligência artificial, poder-se-ão detectar certos padrões de microssismicidade que antecedem os sismos. E talvez então essa análise mais fina permita um dia saber a curto prazo quando vai acontecer um sismo grande.

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