“Cão e gato”: brigas entre irmãos fazem parte e servem para testar limites

Os pais só não devem intervir, a menos que o conflito escale. Devem ser, sim, mediadores, sem escolher lados, aconselham um pediatra e duas psicólogas.

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Os príncipes William e Harry em 2003 REUTERS/Pool

Faz parte. Todos os irmãos têm desentendimentos e brigas que, por vezes, escalam para conflitos físicos. Esses pequenos arrufos fazem parte da afirmação de posição de cada um na dinâmica da família, asseguram os especialistas. Os pais devem estar atentos e servir de mediadores para evitar que a tensão escale. Se os problemas começarem a afectar o bem-estar dos filhos, é hora de procurar ajuda.

No livro de memórias prestes a chegar aos escaparates, o príncipe Harry acusa o irmão William de agressão física e descreve-o como alguém agressivo e facilmente manipulável. O relato do momento da briga podia ser o de um episódio vivido por quaisquer dois irmãos, sobretudo se recuarmos ao período da infância e adolescência.

“Tem a ver com a determinação do papel de cada um. Cada um está à procura do seu lugar e a conhecer os limites do outro, os limites da punição dos pais”, começa por explicar ao PÚBLICO o pediatra Hugo Rodrigues, autor da página Pediatria para Todos. Muitas vezes, considera, estes conflitos têm a ver, simultaneamente, com a admiração dos mais novos pelos mais velhos e um consequente marcar de posição.

A psicoterapeuta de crianças e adolescentes Rute Agulhas corrobora o pediatra, lembrando que as relações de fratria “envolvem a expressão de afectos, agradáveis e desagradáveis”. Os pais, reconhece, têm razão quando descrevem os filhos como sendo “ora muito amigos, ora como 'cão e gato'”.

É natural que, ao longo do crescimento, a fraternidade vá mudando, consoante o temperamento e personalidade de cada um. “Pode surgir a necessidade de se afirmarem. Enquanto uns podem exibir comportamentos mais desafiadores ou mesmo agressivos, outros podem ser mais submissos”, analisa a especialista. No fundo, estão todos à procura do mesmo: perceber onde encaixam.

Esse tango entre irmãos é positivo, com peso e medida, já que prepara para os futuros relacionamentos interpessoais, fora da bolha familiar. “São relações onde as crianças podem testar os limites, aprendendo a gerir os conflitos num ambiente mais seguro e protegido”, observa Rute Agulhas.

Hugo Rodrigues insiste: “As situações de conflito fazem parte do nosso dia-a-dia. Na maioria das vezes acontecem numa relação muito boa. Pode parecer que estão sempre em conflito, mas são crianças que gostam muito uma da outra.”

Se desses arrufos resultar uma “oportunidade de diálogo e acerto de perspectivas”, são então momentos ricos e importantes numa relação de irmãos, nota a psicóloga e terapeuta familiar Joana Garcia da Fonseca. A adolescência é um período de afirmação da privacidade e da identidade e trará desafios acrescidos, acrescenta.

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Os príncipes William e Harry com os pais Carlos e Diana Reuters

É aí que as diferenças entre irmãos se acentuam, elabora também o pediatra: “São mudanças muito rápidas, criam fossos maiores entre idades que não sejam próximas.” Mas não há nada a temer, porque, à semelhança de qualquer fase, também passará.

Mediação

Enquanto não passar, os pais devem estabelecer limites e regras, trabalhando como mediadores. “Aquela reacção de que 'agora castigo os dois, não quero saber de quem é a culpa' pode ser sentida como verdadeiramente injusta para as crianças”, lembra Rute Agulhas.

Mas não se deve, igualmente, escolher entre um filho ou o outro, pede também Joana Garcia da Fonseca. Tal escolha pode implicar uma perda de confiança. “Quando se está em crise é quando mais se precisa da presença dos pais, que devem ficar do lado e procurar compreender”, assevera a psicóloga especialista em direitos e protecção de crianças e jovens.

Em casos de violência física, os pais são chamados a tomar uma posição, “contendo e separando fisicamente os irmãos para que não se batam e, depois de se acalmarem, conversarem sobre o que se passou”, aconselha Rute Agulhas. E o que fazer ao agressor? “Quem agride deve, não só pedir desculpas, mas também reparar no outro que foi lesado.” Além disso, defende a docente universitária, deverá perder algum tipo de privilégio, para que interiorize a relação entre comportamento e consequência.

Atenção para que as crianças não sintam que um é preterido e outro sempre defendido, avisa: “Temos de ser honestos – muitos pais tratam os filhos de forma diferenciada, embora nem sempre tenham consciência dessa diferenciação.” O pediatra Hugo Rodrigues nota que essas distinções, por vezes, se justificam por não ser “possível lidar com dois filhos da mesma forma”, mas reforça que “não é por se ter reacções diferentes que se gosta mais de um ou de outro”.

Quando deixa de ser normal?

As brigas tornam-se preocupantes, esclarece o pediatra, quando parecem já não existir “momentos bons” entre os irmãos e a dinâmica da casa é dominada por isso. Joana Garcia da Fonseca nota, nos adolescentes a chegar ao seu consultório, que os “conflitos ficam mais cristalizados quando existe um enquadramento familiar inserido numa parentalidade não saudável”.

Os pais são sempre um exemplo — de lembrar as constantes disputas entre o então príncipe Carlos e a mulher Diana. Normalmente, reflecte, são casais que discutem muito em frente aos filhos, “num modelo que vai sendo interiorizado e depois reproduzido noutras relações”. É preciso quebrar o ciclo, promovendo a capacidade de escuta, flexibilidade e empatia, para que os momentos de discórdia sejam sinónimo de crescimento e não o arruinar de uma infância e adolescência.

Rute Agulhas alerta que mais vale pedir ajuda de forma prematura, do que que apenas em situações limite, “quando poderá já existir maior resistência face a um processo de mudança”. Se esperarem pelo limite, as fracturas na relação de irmãos podem ser demasiado profundas — como as que se sabem ser as de William e Harry.

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