O ressentimento corrói o casamento

Os casais tinham mesmo a ganhar se, durante uma semana, tivessem câmaras em casa, estilo Big Brother, e depois se sentassem a ver a filmagem com um moderador imparcial à frente.

Foto
@DESIGNER.SANDRAF

Ana,

Tive sempre a convicção de que gritava convosco muito mais do que o vosso pai, mas a coisa mais estranha é que, apesar disso, enervava-me imenso quando era ele a “perder a cabeça”. E aí entrava em cena a pedir calma, a irritar-me, como se houvesse mil outras formas de resolver a situação quando, na realidade, noutras parecidas eu própria desatava aos gritos.

Sentia, também, que me cabia a maior carga no vosso dia-a-dia, e se calhar era assim, mas a verdade é que muito provavelmente por culpa própria, porque, mesmo quando entregava a pasta, não desligava. Por outro lado, aqueles momentos em que ficava quieta e sossegada sabiam-me tão bem, mas tão bem, que como todas as coisas boas, sabiam a pouco. O tempo que estava “ao serviço” parecia-me incomparavelmente mais curto, do que aquele em que não estava.

Agora, como avó, vejo o filme de fora, e percebo que os casais com filhos, sujeitos a uma pressão inacreditável e com um nível de exaustão crescente, entram mentalmente num “Deve e Haver”, que, para além de corroer a relação, é muito viciado. Porque todos nós contabilizamos mais o nosso próprio esforço do que o dos outros, seja em casa ou no emprego. E, tendencialmente, acreditamos que conseguíamos resolver os problemas melhor e mais depressa, sobretudo naquela que consideramos a nossa área de especialização — o “passa-me lá o bebé, porque o visto muito mais depressa do que tu” é o equivalente feminino ao “não mexas no berbequim, que só estragas a parede”.

Estive a pensar e conclui que os casais tinham mesmo a ganhar se, durante uma semana, tivessem câmaras em casa, estilo Big Brother, e depois se sentassem a ver a filmagem com um moderador imparcial à frente. É claro que podiam recorrer à opinião sábia da mãezinha ou da querida sogra, mas, não sei porquê, suspeito que nesse caso era melhor a avó fazer-se acompanhar do notário, para tratarem do divórcio logo ali.

Agora muito a sério: parece-me mesmo que os casais não deviam deixar que o ressentimento se some ao cansaço, e a todos os outros problemas, nomeadamente financeiros que este novo ano vai inevitavelmente trazer. E, enquanto é tempo, porque há depois um momento em que, sinceramente, nem o maior dos amores resiste.

Pronto, e é isto, agora vou abrir uma coluna de consultadoria matrimonial — também tenho de inventar para mim novos desafios. Parece-te bem?


Querida Dra. Isabel Stilwell,

Tentei marcar consulta consigo presencialmente, mas já estava totalmente cheio! Só tinha vaga lá para 2024 e, curiosamente, na sala de espera só estavam sogras e mães preocupadas com os filhos.

Fora de brincadeiras, acho que a sua carta diz tudo, mas é verdadeiramente difícil pôr os seus conselhos em prática. Cada vez estou mais convencida de que temos de desempoeirar o papel da terapia de casal porque na corrida do dia-a-dia era bom sermos “obrigados” a parar e a enfrentar todas as pequenas coisas que vamos engolindo, com a vantagem de receber feedback de alguém que nos ajuda a sair do papel de vítima e a assumir (de parte a parte) as responsabilidades que nos competem.

Mas, e se isto for financeiramente impossível? Ou se um está disponível, mas o outro não? Como avançamos? Parece-me que o único caminho é fazê-lo através de nós próprios, o que custa a aceitar, porque mantemos um ideal romântico de que o outro devia adivinhar e perceber tudo que vai na nossa cabeça e no nosso coração. Que o verdadeiro amor não precisa de grandes explicações. Que “se ele me amasse mesmo” faria sozinho tudo ao seu alcance para me fazer feliz. Mas a realidade é que, tal como acontece connosco, também o outro só vai conseguir “dar-nos” o melhor de si se estiver bem. E o busílis da questão é que para ele estar bem, tem de exigir coisas para si. E quando nós próprios já ultrapassamos tanto o nosso limite, essa exigência, por muito que a entendamos, dói.

Chegados a esse ponto acontece uma coisa curiosa. As mulheres bloqueiam, porque são piores a exigir abertamente para si mesmas, ficam presas na ambiguidade de serem heroínas ou vítimas. E estão, provavelmente, mais treinadas a dar do que a receber, sentem mais culpa em pedir abertamente aquilo de que necessitam e continuam a pensar que a responsabilidade primeira pelos filhos e a casa é sua.

Mas o outro lado da moeda é que facilmente ficam magoadas.

Magoa a facilidade com que o companheiro aceita “ir dar uma volta” ou “ir dormir uma sesta”, magoa que não diga, antes, “vai tu, que precisas mais” e que, apesar da nossa resistência, nos tire as crianças da mão.

Posto isto, que alternativa temos? Aprendermos a dizer com clareza: “Olha, preciso de descansar, tens que ficar aqui tu.” Mas custa muito! Até porque, sejamos honestos, muitos homens reagem com frustração e amuo, e as mães já estão cansadas para aguentar mais uma birra. Parece-nos mais simples, dar-lhes luz verde e aguentar o barco.

Mas a mãe tem razão, o ressentimento cresce. E não só isso... Inadvertidamente estamos também a prejudicar a relação do pais com os filhos, tirando-lhes oportunidades de estar a sós com eles, a criar memórias e a sentir a recompensa maravilhosa que eles nos dão.

Ou seja, da próxima vez que nos irritarmos com os nossos maridos pela facilidade com que nos comunicam que vão ao futebol ou a um jantar de amigos, vamos tomar consciência de que é sinal de que também nós estamos a precisar de uma folga para usar no que nos apetecer. E vamos dizê-lo com clareza, incluindo imediatamente a data na agenda, em lugar de ficar a remoer, que não faz bem a ninguém, nem leva a lado nenhum.

Beijinhos


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários