Projecto artístico recolhe memórias de uma serra da Estrela afectada pelo fogo

Dois alemães e dois portugueses desenvolvem desde Junho um projecto artístico baseado na recolha de testemunhos áudio e vídeo em duas cidades na serra da Estrela. O que é guardar uma floresta hoje? É a questão fundamental de À escuta: CasaFloresta.

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Encontro com a comunidade em Figueiró da Serra, uma das regiões onde o projecto está a ser desenvolvido Lucas Tavares

No início de Junho, Corinna Lawrenz, Joana Sá, Luís José Martins e Nik Völker começaram a desenvolver um projecto artístico em três localidades em Seia (Balocas, Frádigas e Vide) e uma região em Gouveia (Figueiró da Serra), na serra da Estrela. A ideia passava muito por organizar encontros individuais com os moradores, ouvir o que estes tinham a dizer sobre a sua relação com o território e colocar-lhes uma pergunta central: o que é guardar uma floresta hoje? Depois, veio o grande incêndio na serra da Estrela, a 6 de Agosto.

As respostas foram captadas em vídeo por Lucas Tavares, um dos vários elementos que têm colaborado com o quarteto responsável pelo projecto (intitulado À escuta: CasaFloresta). O jovem realizador filmou os entrevistados em vários contextos. Alguns mostraram-lhe os seus terrenos agrícolas. Outros permitiram que a câmara eternizasse o momento em que entraram pela primeira vez na antiga casa de guarda-florestal que existe perto de Balocas (e que tem uma importância simbólica para os moradores dessa pequena povoação e das localidades circundantes).

O grande incêndio que este mês lavrou na serra da Estrela levou a que o sentido de urgência do projecto crescesse. “Filmámos bosques que o fogo queimou. Estamos a trabalhar com recolhas que em pouco tempo se transformaram no arquivo de algo que já não existe. Isso muda a forma como olhamos para elas”, explica ao PÚBLICO a alemã Corinna Lawrenz, que vive desde 2018 em Figueiró da Serra com o também germânico Nik Völker, o seu companheiro.

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O jovem Lucas Tavares Corinna Lawrenz

À escuta: CasaFloresta é o segundo capítulo de um projecto que, pelas mãos de Joana Sá (pianista) e Luís José Martins (guitarrista), começou a ganhar forma em Janeiro do ano passado, quando a dupla começou a organizar encontros com a reduzida população de Frádigas (Seia), aldeia onde nascera o pai de Luís. Os músicos conversaram com os (sobretudo idosos) moradores sobre as suas memórias, gravando sons que evocavam fragmentos de um passado perdido, e também sobre as suas ideias para o futuro do território.

À escuta: Catálogo Poético, o primeiro projecto que resultou dessas conversas, viria a ser composto por oito instalações sonoras e performances, que procuraram ser uma forma de pensar a arte e a vida num lugar remoto.

Quando o PÚBLICO falou com Joana e Luís sobre À escuta: Catálogo Poético, apresentado em Frádigas em Setembro do ano passado, os músicos falaram em querer testar a utopia de a “criação artística poder ser um motor de desenvolvimento social e cultural”, ou um agente de “defesa da biodiversidade e das populações”. À escuta: CasaFloresta é essa utopia a ser testada novamente.

A floresta como local de trabalho e “espaço de frustração”

Joana e Luís estão, desde Junho, a viver na já referida antiga casa de guarda-florestal que existe perto de Balocas. Está desactivada desde o final da década de 1970, mas já foi o lar de pessoas cujo trabalho era olhar pela floresta de pelo menos uma parte da vasta serra da Estrela.

A casa é, nas palavras de Luís, quase “um miradouro sobre a serra”. A paisagem é quase sempre deslumbrante. Só não o é quando há incêndios na zona. “Temos tido uma visão dantesca da serra nas últimas semanas”, diz o músico.

Joana junta-se à conversa para dizer que, quando começaram a ser construídas casas como esta em Portugal, começou a surgir “uma ideia de floresta e gestão do território que na altura era nova”. Daí, talvez, a importância que esta casa assume para as pessoas de Balocas e das povoações circundantes. “Os serviços florestais empregaram muitas pessoas da aldeia. As primeiras estradas a chegar até algumas destas aldeias foram abertas pelos serviços florestais”, refere Luís.

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Joana Sá ROMAN KUTZOWITZ
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Luís José Martins ROMAN KUTZOWITZ

O guitarrista explica que, quando perguntou à população local sobre a sua relação com a floresta, recebeu poucos testemunhos que não descrevessem uma “relação utilitária” com a mesma. “Aqui, a floresta é raramente vista como um sítio de lazer ou reclusão, um lugar poético onde se vai para pensar e desligar. A floresta é (ou foi) o local de trabalho”, diz.

“É normal”, completa Joana, dizendo que os moradores de Balocas são idosos e, “no passado, as pessoas não faziam outra coisa que não trabalhar”. “Atenção: a questão utilitária não significa que não haja uma relação afectiva com a floresta”, sublinha ainda a pianista.

“No presente, a floresta é um espaço de frustração”, retoma Luís. “As pessoas olham para o mato ou para a floresta desordenada e dizem: ‘Isto está um nojo’”, refere. “Estamos a falar de pessoas que conheceram estes lugares com os matos limpos. Entrava-se no pinhal e era possível circular. Hoje, isso está fora de questão.”

Uma povoação quase deserta e uma aldeia menos envelhecida

Joana Sá afirma que Balocas não terá mais do que 15 habitantes permanentes. “Para quem está deste lado, Figueiró da Serra parece uma aldeia gigante”, brinca.

Figueiró da Serra é a sede de uma união de freguesias que, segundo o Censos 2021, tem 377 moradores. Além de ser mais numerosa, esta população inclui ainda uma comunidade jovem, por um lado, e uma comunidade internacional, por outro. Estas comunidades “trazem para cá outros pontos de vista”, diz Corinna Lawrenz. “Por um lado, estamos a trabalhar as memórias das pessoas mais velhas. Por outro, interessa-nos conhecer as perspectivas destas outras comunidades.”

A comunidade jovem de Figueiró da Serra, não tendo um leque de memórias muito vasto, fala sobretudo do futuro. “As questões que fazemos sobre o futuro da floresta costumam ser as perguntas difíceis”, conta Luís José Martins, dizendo que já foram recolhidas muitas respostas “desarmantes e catastróficas”.

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Nik Völker (à esquerda) conversa com residente em Figueiró da Serra (à direita) Lucas Tavares

A partir dos testemunhos recolhidos, Corinna, Joana, Luís e Nik estavam a trabalhar numa instalação audiovisual, que seria apresentada a 3 de Setembro e corresponderia à “primeira fase” de À escuta: CasaFloresta. Mas o incêndio obrigou a uma reformulação do plano.

O espaço da instalação seria a antiga casa de guarda-florestal. Sucede que, por um lado, ela está rodeada de vegetação. Por outro, “a estrada que dá acesso à casa é pequena e os baldios em redor não estão limpos”, diz Luís José Martins. “Quando o incêndio começou, a Protecção Civil começou a avisar-nos de que as questões de segurança poderiam não estar asseguradas e que dificilmente seria possível fazermos uma apresentação na casa em Setembro.”

A apresentação da instalação está, portanto, adiada para 2023. Mas os responsáveis pelo projecto, que não queriam defraudar as expectativas dos moradores — a quem fora dito que no dia 3 de Setembro já seria possível assistir ao material recolhido —, vão fazer, no mesmo dia, uma pequena “partilha do processo de trabalho”, no “centro de convívio” de Figueiró da Serra. “Vamos já mostrar algumas recolhas e organizar um encontro de reflexão com a comunidade”, conta Joana Sá.

O quarteto responsável pelo projecto criará — e disponibilizará online — um atlas cronológico dos testemunhos áudio e vídeo. Futuramente, Joana Sá e Luís José Martins também farão um espectáculo musical a partir das recolhas. Já há duas datas confirmadas: 24 de Novembro na Casa da Cultura de Seia e 4 de Dezembro no Teatro Bairro Alto (Lisboa).

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