A guitarra de Luís Martins ignora o fantasma de Bach

Depois de Deolinda, Powertrio e Almost a Song, Luís José Martins descobre a que soa a sua guitarra quando deixados a sós. Tentos, Invenções e Encantamentos é uma obra de revelação, em que o criador venceu o intérprete.

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4-3-2-1 (isto para não falar de 7). Desde 2006 que a carreira de Luís José Martins enquanto guitarrista se tem encaminhado para um afunilamento cada vez maior. Esse foi o ano em que os quatro Deolinda começaram a obrar uma extraordinária apropriação e revisão da música popular portuguesa, para logo depois Luís se juntar a Joana Sá e Eduardo Raon num Powertrio que navega entre destroços da música erudita e, mais tarde, cortar na abstracção e carregar mais no lirismo no duo Almost a Song em que coabita com o piano de Joana. (Antes tinha havido o Bicho de 7 Cabeças, uma das experiências que desaguaria nos Deolinda – daí o 7). Agora, no final de um caminho que o músico classifica como “demorado e tortuoso”, assume uma voz individual na guitarra, afastadas umas quantas tentativas frustradas de descobrir qual a sua natureza se deixado a sós com o instrumento em que se formou.

Esse percurso formativo seria responsável, em boa parte, pelo atraso na concepção de Tentos, Invenções e Encantamentos – agora editado pela Shhpuma e apresentado em concerto a 16 de Junho, no Teatro Maria Matos, Lisboa. “Vim do lado mais clássico”, relata o guitarrista. “Fiz todo o meu caminho ligado à interpretação e todos nós, que passamos por essa formação, temos um bocado aquela coisa dos deuses sagrados.” Ou seja, diante de cada nova criação própria, a tentação de Luís era sempre a de menorizá-la, pensando “isto não vale nada, o que é isto ao pé de Bach?” Tentos é, por isso, e num primeiro momento, uma vitória do criador sobre o intérprete, da expressão sobre a autocensura. Claro que essa formação não se apaga pura e simplesmente, e todo o álbum é marcado pela ideia com que o músico cresceu de que a guitarra “é muito transparente e é muito difícil conseguir um discurso que seja dito de uma clara, sem sujidade”.

Depois de anos “a levar na cabeça” por conta de qualquer ruído que perturbasse a limpidez exigida a um intérprete clássico, essa seria outra dificuldade levantada pela gravação de Tentos. “Uma coisa é imaginar o material e pô-lo nas mãos”, diz. “Outra é poli-lo para sentir que fica bem dito.” Obrigou a “ir ao ginásio”, como lhe chama, para garantir que tecnicamente estava à altura daquilo que a imaginação tinha arquitectado com minúcia na sua cabeça. “Quando se toca em ensemble e em grupos é muito mais fácil diluir a intenção por todos; quando se está a solo é mesmo preciso voltar ao ginásio. Mas depois é boa a sensação de ver as coisas a ganhar forma e sentir que os dedos estão lá.”

Tentos, além de remeter para as tentativas que Luís foi experimentando pôr de pé desde que começou a pensar em construir um reportório de guitarra solo (vontade que remonta ao período posterior à edição do disco de estreia dos Deolinda, Canção ao Lado, de 2008), evoca também os tientos instrumentais renascentistas, forma musical que Luís ouviu durante o processo criativo. “Esse reportório sempre me interessou”, confessa. “É um reportório feito no instrumento, aventureiro e misterioso na composição – muitas vezes parece que são peças que não têm época, porque apesar de pertencerem ao Renascimento não respeitam muito as regras harmónicas. Lembro-me de tocar no Conservatório a Fantasía que contrahaze la harpa en la manera de Ludovico, de Alonso Mudarra, e fascinou-me por ser uma obra tão contemporânea, podia ser de hoje e de um tipo que não viesse do clássico. Depois, quando se entra no barroco, o instrumento já responde muito mais à estética da época.”

Dos tientos Luís parece sorver esse lado misterioso, aventureiro e sem datação precisa – embora formalmente esteja até mais próximo do barroco do que do renascimento. Esse mistério e essa datação pouco clara sobressaem quando os terrenos movediços da sua música fazem com que fale da belíssima peça inicial, Prelúdio, como recorrendo a um “arpejo típico dos prelúdios para alaúde de Weiss ou Bach”, mas que soa também familiar às peças para guitarra portuguesa de Carlos Paredes e de Ricardo Rocha, fazendo talvez escala nos prelúdios para guitarra de Villa-Lobos. Dentro de cada composição de Tentos há, de facto, uma multiplicação de referências, de dinâmicas e de sugestões, oferecidas quase sempre pela guitarra (que chega a acumular 20 vozes) mas também pela guitarra preparada, pelas percussões ou pela (subtil) electrónica.

Música de igreja

As invenções e os encantamentos a que o título se refere apontam ainda para as questões mais técnicas (invenções) e os lugares mais pessoais e contemplativos (encantamentos) de um músico que se diz, antes de mais, seduzido pelos sons da guitarra que mais a colocam a raiar o silêncio. É uma zona que encontramos com frequência no interior dos temas, quando Luís explora com uma atenção microscópica as possibilidades do instrumento, ampliada, por contraste, quando sucede (com uma delicadeza de tom quase sacro) ao bolçar da guitarra que dá início a Estudo e Ressonância – tema que ecoa, lá ao longe, o fragor de Rock em Setembro do duo Almost a Song.

De resto, o guitarrista reconhece que este material, se comparado com todos os outros projectos em que se foi envolvendo, “está mais próximo a nível musical de Almost a Song”. “Tenho sempre muita dificuldade em dizer o que isto é, mas quando me perguntam o que gravei respondo muitas vezes que é como o Almost a Song, mas sem piano”. A definição é reconhecidamente imprecisa, mas dá talvez a pista mais certeira para “um certo lirismo” que Luís identifica em ambos os reportórios. Ainda que Tentos corresponda também a um momentâneo lugar de chegada, para o qual todos os grupos e ensembles contribuem de forma inequívoca – sim, mesmo os Deolinda. “Há muitas coisas que tenho diluídas no meio de canções, e que não são tão perceptíveis, mas que estão aqui também”, admite. Inclusivamente uma certa construção melódica e estrutural de canção que acaba por se apoderar da guitarra – mais nitidamente nessa deslumbrante torre(nte) de sons que é Ostinato e Canção, e em Folksong – e oferecer uma forma que pode muito bem ser herdeira de um cancioneiro popular.

Registado na Igreja do Convento de S. Bento, em Avis, e na Antiga Igreja do Convento de S. Francisco, em Coimbra, Tentos, Invenções e Encantamentos reage e relaciona-se admiravelmente com o espaço, busca ou provoca a paz, alimenta-se ou corrompe um espaço aberto proporcionado pela acústica. E afirma de vez o lugar de um músico fundamental que olha para a guitarra como uma orquestra e que foi chegando até aqui inspirado e empurrado por Filho da Mãe, Tó Trips e, sobretudo, Norberto Lobo. Terá sido um caminho demorado e tortuoso, mas conduz-nos a um lugar tão estranho quanto belo.

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