Chegar a 30% de protecção do oceano não é utopia, mas exige “eficácia e inteligência”

Os oceanos são vastos e só 8% estão protegidos. Salvaguardar a biodiversidade de um terço destes gigantes azuis está ao alcance das nossas mãos, mas preservar por si não basta: há que ter uma gestão activa e garantir a fiscalização das áreas protegidas. “Não é o facto de termos as áreas consignadas à conservação que nos garante que elas de facto vão ser efectivas.”

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Os cientistas têm esperança na concretização desta meta, mas esperam que exista uma boa gestão das áreas protegidas. Na imagem, a ilha de São Miguel, nos Açores Anna Costa

Há milhares de espécies em risco de desaparecer por causa das alterações climáticas e da destruição de habitats. Para as tentar proteger e restaurar a natureza nestes próximos anos, existe uma meta em discussão que almeja proteger mundialmente 30% dos ecossistemas marinhos e 30% dos ecossistemas terrestres até 2030, incluindo 10% de protecção total. É um número importante tendo em conta que as metas de conservação têm ficado aquém das expectativas, ainda que a percentagem de áreas marinhas protegidas tenha vindo a aumentar nos últimos anos. Com a chegada da Conferência dos Oceanos das Nações Unidas a Lisboa na próxima semana, o PÚBLICO falou com alguns especialistas para perceber se é exequível atingir este nível de protecção em tão pouco tempo. A resposta é positiva, mas é preciso saber o que se protege e garantir que existe gestão, financiamento e fiscalização destas áreas protegidas.

“Não temos tido grande sucesso no cumprimento destes objectivos de conservação e esta é uma estratégia mais agressiva”, explica a professora de ecologia Helena Freitas, da Universidade de Coimbra. Isto porque os decisores admitiram que “aquilo que temos não é suficiente”. É por isso necessário garantir que existe protecção, mas sobretudo que ela é eficaz no terreno. Algumas áreas marinhas protegidas “no papel estão bem, mas na realidade têm alguns problemas”, alerta o antigo ministro do mar, Ricardo Serrão Santos.

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A medida em discussão inclui 10% de protecção total Nuno Ferreira Santos

Comecemos, então, por explicar este objectivo colectivo. Muitas vezes designada de “30x30” (30% de protecção até 2030), esta meta deverá ser aprovada no final deste ano em Montreal, no Canadá, na segunda fase da 15.ª Conferência das Partes (COP15) da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), um tratado internacional formalizado em 1992.

A meta 30x30 é a principal bandeira das negociações actuais para o Quadro Global da Biodiversidade 2030, em que se faz um balanço dos desafios desta década e cujo principal objectivo é proteger a natureza e reverter as perdas de biodiversidade. Era suposto a COP15 ter acontecido em 2020, mas foi sendo adiada por causa da pandemia de covid-19. A primeira fase decorreu virtualmente no final de 2021 em Kunming, na China, e era previsto que a segunda fase também, mas foi anunciado esta terça-feira que afinal se realizará em Montreal de 5 a 17 de Dezembro. Em causa estão as “incertezas relacionadas com a pandemia”, disse a secretária executiva da convenção, Elizabeth Maruma Mrena. A China continuará a presidir a convenção.

O acordo a alcançar entre países servirá para traçar metas de conservação da natureza a longo prazo e também no horizonte até 2030, fazendo com que os 195 signatários desta convenção integrem estas metas nas suas políticas nacionais. Os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO tomam como certo que a meta seja aprovada e se torne vinculativa. “Cada país poderá cumprir esta meta da forma que entender”, diz Helena Freitas. “Mas é preciso que seja com eficácia e com inteligência.”

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ENRIC VIVES-RUBIO

Mais de 100 países (incluindo Portugal) já afirmaram publicamente que pretendem proteger 30% dos oceanos a nível mundial até ao final da década, segundo a organização Pew Charitable Trusts. O Ministério do Ambiente e da Acção Climática diz ao PÚBLICO que “o Governo já assumiu o compromisso político relativo ao cumprimento destas metas” e que a protecção de 30% “deve ser assumida como uma missão de todos os sectores da sociedade portuguesa”. Praticamente todos os países manifestaram interesse, “com excepção daqueles que ainda estão muito fechados em si”, refere Helena Freitas.

Esta meta “é uma forma de preservar ecossistemas e capital natural que são essenciais para o nosso bem-estar e também para o bem-estar da natureza em geral”, diz Catarina Grilo, directora de conservação e políticas na organização ambiental ANP/WWF. “A nível mundial, estamos bastante longe” destas percentagens, avisa a bióloga marinha.

Em 2021, a área marinha protegida no planeta era de 8,1%. Destes, apenas 2,7% tinham um regime forte de protecção, segundo os dados do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA). E esta meta de protecção não pode deixar de fora as águas internacionais: ainda que representem 61% dos oceanos, só 1,18% das áreas marinhas se encontram protegidas fora das jurisdições nacionais.

A protecção em alto mar é, aliás, um dos maiores desafios. São precisos acordos internacionais, e o PNUA diz que serão “necessários esforços para expandir a área marinha protegida para lá das águas costeiras, incluindo em áreas para lá das jurisdições nacionais”. Nas áreas nacionais, houve um “aumento drástico” da quantidade de zonas protegidas, diz o PNUA, mas é a qualidade das áreas protegidas e conservadas que tem de ser repensada. Estas áreas são sobretudo importantes porque são “portos de abrigo” para a biodiversidade.

Trata-se de “um esforço muito grande, tanto de Portugal como de todos os países, mas não é um esforço impossível”, acredita Catarina Grilo. Além da sua exequibilidade, “estas metas são importantes até do ponto de vista de motivar e de ter algo a que almejar colectivamente”, argumenta. Mas o seu valor não é meramente simbólico: “É um objectivo comum, focado, palpável e que é concretizável no terreno.”

É exequível, mas tem de ser eficaz

Será esta protecção alcançável em apenas oito anos? “Ainda temos muito pela frente, mas estou optimista, porque temos assistido a progressos significativos no número de áreas marinhas protegidas”, diz o antigo eurodeputado Ricardo Serrão Santos. “É uma meta que estou convencido de que é exequível até 2030, com 10% de protecção total” – e a ambição posterior será aumentar esta protecção estrita. “O número de áreas marinhas protegidas a nível global tem vindo a aumentar paulatinamente, e isso é positivo.” Ainda assim, ressalva que estes objectivos não podem ficar só “no papel”.

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As pradarias marinhas são um dos habitats que se devem proteger Nuno Ferreira Santos

Helena Freitas acredita que o número em si é simbólico, mas é “um objectivo fantástico”, que nos põe “numa trajectória distinta da que temos feito”, que é “ocupar, ocupar, ocupar”. A professora de ecologia e biodiversidade acredita que a meta é exequível, mas tem dúvidas quanto à sua eficácia. “É preciso perceber em que moldes, como é que os países vão cumprir, que significado é que isto tem”, aponta. “Não é o facto de termos as áreas consignadas à conservação que nos garante que elas de facto vão ser efectivas.”

A intenção não vem de agora. As metas de biodiversidade de Aichi, definidas em 2010 na CDB, já mostravam a necessidade imperiosa desta protecção. Mas a estratégia traçada em 2010 foi um “rotundo fracasso”, como se lê no relatório Biodiversidade 2030 (apresentado em Maio último), já que a taxa de perda não só não se reduziu como até aumentou. As metas de Aichi eram muito diversas: tinham 20 objectivos para cumprir até 2020, que incluíam a redução da poluição, o aumento da consciencialização sobre biodiversidade e a gestão sustentável dos recursos aquáticos vivos. Só que a avaliação posterior revelou que nenhuma das 20 metas foi totalmente alcançada.

Em Portugal, há mar e mar para proteger

E como fica Portugal no meio desta proposta mundial? Para o biólogo Henrique Folhas, não há dúvidas de que o país terá sucesso: “Portugal tem toda a facilidade em atingir os 30% e irá atingi-los garantidamente.” Tem é de haver critério e diversidade na escolha das áreas protegidas. Daí que seja importante que estes 30% sejam distribuídos pelos diferentes tipos de habitats, como os recifes, as areias, as zonas pantanosas, os montes submarinos, as pradarias das reservas marinhas.

“Não queremos atingir os objectivos só como meta, é atingir esse objectivo e garantir que há uma representatividade da diversidade biológica nacional. Só assim é que faz sentido estar a proteger”, diz o especialista em áreas marinhas protegidas, que faz parte da Sciaena, organização não-governamental de conservação marinha. E compara: proteger indiscriminadamente seria como salvaguardar 30% de florestas com eucaliptos, enquanto todas as outras espécies ficariam por proteger.

O cenário não é utópico, mas é importante que exista fiscalização. A gestão, diz Henrique Folhas, é “outro mundo”. “No campo geral, esse é o grande problema de Portugal: temos uma área enorme que não é gerida e dificilmente temos recursos financeiros para as gerir.” Tem também receio de que a bandeira da conservação abra a porta a novas explorações: “Se estamos a proteger 30 ou 40% da nossa área, temos bagagem moral para furar o resto”, comenta. Teme que surjam novas actividades “disfarçadas de conservação e sustentabilidade”.

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PAULO PIMENTA

No mar que está sob a jurisdição portuguesa há um “grande esforço a fazer”, diz Catarina Grilo: “Não é só criar mais áreas marinhas protegidas ou alargar as existentes, mas é também garantir uma gestão efectiva.” A maior parte das áreas marinhas não tem um plano de gestão, aponta.

Ainda que cerca de um quinto do território terrestre português esteja protegido, o caso no mar é mais grave: só há 7,92% de áreas marinhas protegidas e só 0,7% dessas áreas são monitorizadas. “É um progresso que em Portugal não tem tido ainda a expressão que já poderia ter”, considera Ricardo Serrão Santos. Na União Europeia, por exemplo, existe 11% de área protegida no mar e 26% da superfície terrestre classificada.

Isto num país que tem uma área gigantesca passível de ser protegida: Portugal tem uma das maiores zonas económicas exclusivas (ZEE) do mundo. Segundo o Governo, esta área estende-se por 1,7 milhões de quilómetros quadrados e inclui “uma grande diversidade de ecossistemas e recursos”. Junta-se ainda a plataforma continental estendida proposta para além das 200 milhas náuticas, que aumenta a área abrangida sob jurisdição nacional para cerca de quatro milhões de quilómetros quadrados.

O que se pode fazer?

Ampliar áreas marinhas para atingir os 30% de protecção, fazer uma avaliação criteriosa das áreas protegidas, garantir a conectividade entre áreas, restringir actividades de exploração e, sobretudo, garantir financiamento e uma gestão activa são algumas das formas de se conseguir atingir este marco. “Há muito a fazer” no mar: trata-se de um domínio público, sem propriedade e com conflitos de actividades, analisa Ricardo Serrão Santos. Além disso, a terra está mais “domesticada” do que o mar.

Primeiro, “é preciso perceber que género de compromisso” existe, diz Helena Freitas. “Se há programas de monitorização associados, se há algum mecanismo global, se há acompanhamento, se há investimento, até que ponto pode haver um pacote financeiro de ajuda para os países que têm mais dificuldade em ter este tipo de ferramentas, de capacidade técnica e humana”, refere. No fundo, há ainda “muitas questões em aberto”. Será também preciso ter enquadramento legislativo a nível nacional e internacional.

“Muita gente pensa que numa área marinha protegida é proibido todas as actividades, mas não. É ter uma gestão muito primorosa das actividades que possam existir”, explica Ricardo Serrão Santos. Dentro dos 30%, um terço é de protecção estrita. No caso dos mares, tal significa que “não se pode pescar e não se pode extrair minérios do fundo do mar”, por exemplo, explica Catarina Grilo. “Nos outros 20% há limiares estabelecidos para o tipo de actividades que podem ser realizadas”, sempre pensando primeiro na protecção e na conservação da biodiversidade.

É preciso não só conseguir a meta dos 30% de conservação, mas também garantir a conectividade entre áreas protegidas. Esta conectividade permite que as espécies possam viajar entre áreas protegidas, o que também aumenta a sua resistência contra as alterações climáticas. Como é denunciado no relatório Biodiversidade 2030 “no mar, a maioria das áreas protegidas permite a pesca e outras actividades extractivas, e poucas diferenças existem relativamente ao exterior”.

Quanto a esses 10% de protecção estrita, o caminho ainda é longo. Em Portugal, segundo os dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), as áreas de protecção total representam 0,17% do território continental. Segundo a WWF, apenas 0,02% do mar territorial e 0,001% da ZEE têm normas de gestão que proíbem a actividade extractiva. Como se diz no relatório mencionado, “a concretização da meta dos 10% de conservação estrita implicará um esforço considerável”. Ricardo Serrão Santos acredita que “a ambição para a protecção total ao longo dos anos vai crescer, crescer, crescer”.

De 2010 para 2020, os quilómetros quadrados marinhos protegidos a nível mundial passaram de nove milhões para 28,1 milhões. Em 2000, só dois milhões (0,7%) dos oceanos estavam protegidos. Apesar das melhorias, as áreas protegidas existentes continuam a ser insuficientes para “fazer face a uma crise global de biodiversidade” e que tem na crise climática uma nova ameaça, lê-se no relatório Biodiversidade 2030.

O mar sob jurisdição nacional é de domínio público marítimo e está sob a alçada do Estado, o que significa que o gere em nome de todos os seus cidadãos. Catarina Grilo acredita que “é preciso envolver os privados nessa gestão activa e envolver as comunidades locais e as organizações de ambiente para a protecção e restauro da biodiversidade”, tanto dentro das áreas protegidas como fora. “Não podemos pensar que estas áreas protegidas são umas ilhas de biodiversidade e que à volta podemos fazer tudo o que nos apetece e que não há problema nenhum”, avisa a especialista da WWF. Ainda assim, as áreas protegidas são uns “faróis de esperança na recuperação da biodiversidade”.

E, como em quase tudo, é preciso financiamento. “A conservação da natureza tem sido um parente pobre das políticas de ambiente dos últimos anos”, denuncia Catarina Grilo. Duplicar as verbas do Fundo Ambiental (de 571 milhões em 2021 para 1125 milhões em 2022) é positivo, diz, mas “claramente insuficiente”. Este fundo para 2022 foi o “maior de sempre”, segundo o Ministério do Ambiente, mas houve organizações ambientais que o consideraram “escandaloso” por apoiar todos os sectores “menos a natureza”. E denunciavam ainda que faltava investimento no restauro ecológico e em projectos com qualidade de conservação da natureza e da biodiversidade.

No relatório Biodiversidade 2030, coordenado por Miguel B. Araújo, é referido ainda que “é hoje consensual que a designação de áreas de conservação ao abrigo da legislação nacional e europeia é insuficiente para reverter a perda de biodiversidade e assegurar uma eficaz fixação de carbono por parte dos ecossistemas naturais”. Há a consciência de que “as taxas de degradação da biodiversidade se medem em décadas, enquanto as taxas de reposição de espécies extintas se medem em milhões de anos”. Se nada for feito, “a trajectória de perda de biodiversidade continuará o seu curso actual”.