Há um novo guia para ajudar na gestão das áreas marinhas protegidas

Novo instrumento lançado esta sexta-feira na revista Science pretende clarificar os diferentes tipos de protecção e estados de implementação das actuais e futuras áreas marinhas protegidas. Apenas 0,01% das áreas marinhas protegidas em Portugal tem protecção “total”, de acordo com resultados preliminares.

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Parque Marinho Juan Fernández, no Chile Enric Sala/National Geographic

Mesmo com áreas marinhas protegidas pelo oceano fora, o que é que está, de facto, a ser protegido? Esta é uma questão crucial na conservação marinha e com uma resposta, muitas vezes, pouco clara. Afinal, a terminologia usada para essas áreas não segue um padrão e os seus níveis da protecção podem variar substancialmente. Para colmatar essas falhas, é lançado esta sexta-feira na revista científica Science um novo guia para ajudar na avaliação e gestão das áreas marinhas protegidas. A grande expectativa é que possa contribuir para se inverter as tendências de degradação no oceano.

Designado “O Guia de Áreas Marinhas Protegidas: um Enquadramento para Alcançar Metas Globais para o Oceano”, este instrumento teve o contributo de 42 cientistas de 38 instituições – incluindo os portugueses Emanuel Gonçalves (coordenador científico e administrador na Fundação Oceano Azul) e Bárbara Horta e Costa (investigadora do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve).

Antes de explicar no que consiste, Emanuel Gonçalves faz questão de indicar que este guia tenta clarificar certos aspectos sobre as áreas marinhas protegidas (AMP). Primeiro, a terminologia usada para essas áreas não está padronizada. “Aquilo que é chamado parque marinho num país tem um significado diferente do que é chamado parque marinho noutro país. Isto traz uma enorme confusão para percebermos se estamos a alcançar os objectivos ou não”, refere o também professor no ISPA-Instituto Universitário e especialista em conservação marinha.

Depois, há um problema relativamente à protecção marinha: o grau de protecção das AMP varia muito. “Muitas delas incluem até actividades destrutivas e extractivas, como o arrasto de fundo”, exemplifica Emanuel Gonçalves. “É fundamental percebermos quais os níveis de protecção que as áreas marinhas protegidas podem mesmo desenvolver.”

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Recife de Coral no Kiribati Enric Sala

Este novo guia permitirá então avaliar a necessidade, eficácia e urgência na protecção do oceano, bem como o alcance de metas globais para reverter a perda de biodiversidade através das AMP. “É um guia para orientar as políticas de conservação no mar relativamente às áreas marinhas protegidas e para sabermos como as estamos a proteger”, salienta Emanuel Gonçalves.

Há dois grandes eixos de avaliação neste guia. Num primeiro eixo, categorizam-se as AMP em quatro níveis de protecção: total, alta, ligeira ou mínima. “São quatro níveis de protecção que têm a ver com os impactos das actividades. Se se deixar [que sejam realizadas] certas actividades numa área protegida, como é que ela vai ser classificada?”, nota o especialista em conservação marinha.

Emanuel Gonçalves e Bárbara Horta e Costa contribuíram para este novo estudo por terem desenvolvido o “Sistema de Classificação de AMP Baseado nos Regulamentos”. Nesse trabalho, feito através de um projecto europeu, relacionavam-se os impactos das actividades nas AMP com as suas regulamentações. Usado por algumas plataformas a nível internacional, esse sistema acabou por ser integrado na elaboração das categorias dos níveis de protecção do novo guia.

Num segundo eixo do guia, categorizam-se as AMP consoante o estado de implementação: proposta, designada, implementada e activamente gerida. “Isto é muito importante porque posso ter uma área protegida, mas se isso estiver apenas no papel não se está a proteger nada. Há uma legislação a indicar que está ali uma área marinha protegida, mas ainda não está implementada e não há recursos humanos, vigilância nem planos de gestão”, esclarece Emanuel Gonçalves.

Depois, há ainda outras duas componentes no guia: as condições de sucesso, com princípios e processos necessários para planear e gerir uma AMP com sucesso; e os resultados de conservação, com os efeitos esperados a nível da conservação e dos benefícios sociais de uma AMP num certo estado de implementação e nível de protecção.

Como funcionará?

Quando se avalia uma AMP através do guia, fica-se com um retrato mais claro e transparente do que é preciso fazer nessa área. Emanuel Gonçalves exemplifica que, se uma área for categorizada como “designada”, isso quer dizer que ainda há muito trabalho pela frente até que esteja a ser “activamente gerida” e têm de se pôr em prática certos procedimentos, como planos de monitorização. Portanto, este guia poderá ajudar governos, gestores e a sociedade no geral a ter uma ideia do ponto de situação de uma AMP para se poderem tomar decisões mais informadas. “O Guia das AMP permitirá que investigadores, profissionais, utilizadores e decisores de áreas marinhas protegidas compreendam o que se espera das suas AMP. A avaliação da qualidade das AMP poderá assim ser comparável a nível global”, afirma Bárbara Horta e Costa, num comunicado sobre o trabalho.

E como funcionará? Por agora, foi publicado o artigo na Science com o enquadramento científico para se pôr em prática o guia. Emanuel Gonçalves também informa que este guia está a ser discutido em instâncias internacionais, como na União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). E equipas dos Estados Unidos ou da África do Sul que participaram neste processo já estão a fazer uma primeira avaliação com as autoridades dos seus países. “Esperamos poder avançar com essa avaliação em breve em Portugal”, refere o administrador da Fundação Oceano Azul.

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Na Reserva Marinha das Ilhas Pitcairn Enric Sala/National Geographic

Num “primeiro olhar para o actual estado da situação” das AMP em Portugal, já se viu que cerca de metade tem uma protecção “ligeira” e aproximadamente outra metade tem uma protecção “alta”. A protecção “total” é muito residual – menos de 0,01%. Não há praticamente protecção mínima, o que é “um bom sinal”, assinala Emanuel Goncalves. Resultados preliminares também sugerem que a maioria das 72 AMP no país (sem contar com a Rede Natura 2000) não esteja ainda “implementada”. Mais de 90% delas estão apenas “designadas”. “É fundamental implementar as que já existem.”

Os países podem usar esta ferramenta como melhor entenderem. “A nossa expectativa é que possa haver um trabalho mais administrativo das autoridades para que possam usar este guia para avaliar o ponto da situação e permitir fazer as mudanças necessárias”, indica. E, na prática, como será posto em prática? Este instrumento pode ser aplicado em qualquer sítio e a qualquer altura. Para isso, considera-se uma certa AMP, vê-se qual é o seu regulamento, como está no terreno e categoriza-se essa área com os níveis de protecção ou estados de implementação.

Através dessa avaliação, consegue-se perceber se uma AMP está “no sítio certo” ou não: ou seja, se está a ser “activamente gerida” ou “implementada” e com uma protecção “alta” ou “total” – os níveis que permitem mais resultados biológicos, sociais ou económicos. Desta forma, podem justificar-se (ou não) certas medidas. As autoridades responsáveis pela protecção da natureza ficam assim com uma ferramenta para saber o que é necessário fazer. Em Portugal, o guia pode ser usado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas ou pela Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos.

“Sabemos que estamos a perder biodiversidade e também sabemos que temos ferramentas que funcionam – as áreas marinhas protegidas. Contudo, só funcionam se forem protegidas com níveis de protecção elevados e devidamente implementadas”, reforça Emanuel Gonçalves. Espera-se que o novo guia permita que a conservação da natureza seja acelerada, reforçada e haja protecção eficaz dos habitat e das espécies. “Há relatórios que mostram que estamos a perder biodiversidade e este instrumento pode inverter as tendências de degradação.”

O guia chega num momento decisivo em que países estão a negociar a meta de protecção de, pelo menos, 30% do oceano até 2030. A Europa (incluindo Portugal) já se comprometeu com esse objectivo.

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