Os baloiços

Já é noite. O bairro, tipicamente soviético, também tem árvores. Automóveis e baloiços. E gente. Chegará o dia em que haverá baloiços para todos. Esperança.

Blocos de cimento. Pneus. Sacos de areia. Ferros. Homens. Bandeiras da Ucrânia. Os checkpoints estão colocados estrategicamente para travar o avanço das tropas russas. Pedem passaportes, revistam automóveis. Procuram, como agulha no palheiro, infiltrados russos. O condutor é cauteloso. Nunca ultrapassa os limites de velocidade. As aldeias vão aparecendo. Na estrada estreita e enlameada as barreiras estão a postos. Algumas sem ninguém. Sente-se o sossego do campo. As árvores, quase sempre todas alinhadas, perdem-se de vista. A floresta é imensa. Fábricas, grandes fábricas, made in USSR são agora esqueletos. Sobram os tijolos dos edifícios e as vidraças partidas. Sempre imponentes, as chaminés. Já não vomitam fumo negro. Ao longe, um comboio gigante. É de mercadorias. Ferrugento. Tudo é triste.

Na berma da estrada existem cruzes e flores de plástico. Pessoas que morreram ali. Acidentes. Uma cruz de Cristo deixa-se adivinhar no meio da floresta. É quase do tamanho das chaminés. É toda branca. Transporto para aquele local, de árvores alinhadas e terra feita de neve, as imagens da televisão ucraniana. O café estava cheio. A televisão, pregada a uma parede creme. Sem som. Indiferença. Ninguém olha para os soldados patriotas. Só eu. Soldados ucranianos mataram soldados russos. Numa floresta também. Pontapeiam um jovem russo. Loiro. Coberto com uma mistura de sangue e terra. Terão que ter a certeza de que está morto. É a guerra. É a morte, por mais cruzes de Cristo que plantemos.

Quem resgatará aquele corpo tenro? Será entregue à família? Terá funeral? Uma coisa é certa: o seu nome será anexado nos milhares de folhas Excel de um ministério qualquer. A lista dos que partem vai ser infindável. Russos e ucranianos. Florestas e cidades pintadas de sangue.

Já é noite. O bairro, tipicamente soviético, também tem árvores. Automóveis e baloiços. E gente. Subo ao terceiro andar. Uma menina não fala. O pai e a mãe estão a combater. Não percebe porquê. As saudades não a deixam pensar. Uma jovem acaricia a barriga. Está grávida. O marido é soldado. Está a combater. Na parede do seu quarto, a televisão está desligada. Penduradas num fino fio, uma fotografia do soldado pai e duas fotografias da última ecografia. Chegará o dia em que haverá baloiços para todos. Esperança.

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