Lídia e Sofia: duas amigas que se visitam com a guerra ao longe

Nos seus lares, os ucranianos tentam manter as suas rotinas em coisas simples como visitas de amigos ou planear o nascimento de uma criança. Mas a guerra invade o espírito de todos.

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FAMILIA UCRANIANA QUE TEIMA EM NÃO FUGIR RECOLHER OBRIGATORIO CIDADE DE LVIV ADRIANO MIRANDA/PUBLICO�

Sofia aparece com um bolo nas mãos entre os prédios escuros. Vai visitar a amiga Lídia, que está grávida de nove meses e terá a sua filha em breve. Poderia ser um serão de domingo como outro qualquer, mas em Lviv o fantasma da guerra assombra até a mais quotidiana actividade. Sofia não poderá demorar-se muito em casa da amiga – o recolher obrigatório está fixado nas 22 horas –, mas não é esse o principal efeito da invasão lançada menos de duas semanas antes pela Rússia e que tocou a vida de todos.

Há normalidade na guerra. Os ciclos humanos prosseguem, as pessoas continuam a encontrar-se e o acaso não deixa de actuar. O acaso daquele dia foi Sofia ter encontrado uma cadela abandonada na rua. Há muito que ela e o marido, Andrii, queriam adoptar um animal de estimação. Ou melhor: há muito que o filho deles, Ostap, de quatro anos, queria ter um companheiro de brincadeira. “O dia foi agitado”, desculpa-se Sofia. Mas a visita à amiga Lídia manteve-se na agenda.

Lídia, de 30 anos, recebe-nos num pequeno apartamento num prédio vetusto, amarelado, igual a dezenas que o rodeiam. A vizinhança é um labirinto de grandes edifícios, todos já com mais de 50 anos, pouca iluminação e aspecto pouco acolhedor. Tudo muda quando Lídia aparece à porta de sorriso aberto; por trás de si aparece a mãe, Natalia, que se apressa a pegar no bolo trazido para Sofia para depositá-lo numa mesa já coberta por comida e chá. Rapidamente aparece o pai, Anatoli, que traz um chapéu típico da Geórgia. É, na verdade, um sinal de ausência.

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Lídia é casada com Gocha, um georgiano que está há quatro anos no Donbass a combater pelo Exército ucraniano os rebeldes pró-russos que desde 2014 ocupam parte da região. Antes já tinha lutado na guerra da Geórgia em 2008, e também tinha estado destacado no Iraque. Agora está integrado na luta contra o Exército russo em Volnavakha, uma localidade entre Donetsk e Mariupol, onde se desenrolam combates intensos. Se tudo correr conforme o planeado, a 15 de Março, Lídia irá dar à luz uma menina, Katevani, nome georgiano em homenagem à mãe de Gocha, já falecida. O pai não estará lá para ver.

Não há dramatismo nas palavras de Lídia, que se apresenta como uma “combatente positiva”. A febre de voluntariado que parece ter invadido as vidas de todos os ucranianos desde que a invasão foi lançada já a consumia desde que a guerra no Donbass estalou, em 2014. Recolhia fundos e arranjava forma de enviar mantimentos para a linha da frente. Um dia, foi até ao Leste do país para participar numa campanha de solidariedade na frente de combate quando conheceu um enorme soldado georgiano.

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A primeira fotografia que tiraram juntos está exposta com destaque em cima da mesa: uma caneca adornada com os rostos sorridentes de Gocha e de Lídia, que estava com a cara pintada por ter participado num teatro. “Ele apaixonou-se por mim nesse estado!”, conta, com uma grande gargalhada.

“Está vivo”

Há dois dias que Lídia não sabe nada de Gocha. Da última vez que falaram apenas conseguia escutar o ruído de bombas e gritos, mas, antes do fim da chamada, ouviu o marido dizer “estou bem”. É suficiente, garante. “Significa que está vivo.” Para lidar com a ansiedade, Lídia, que estudou Psicologia, diz que tem tentado dosear o consumo de informação. Reduziu as fontes de notícias a apenas três, de carácter oficial, em que são resumidos os resultados das operações militares, e consulta-as apenas em determinados períodos.

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A amiga Sofia conta que passou praticamente os primeiros seis dias desde o início da invasão sem dormir. Só quando ao sétimo dia se apercebeu que algo não estava bem consigo própria é que decidiu pôr um travão. “Os ucranianos neste momento não dormem. Nenhum de nós, posso garantir. Mesmo que esteja calmo e seguro aqui, acordamos todas as noites, olhamos para os telemóveis e para as notificações. Vamos ver as mensagens, vemos onde houve combates, onde caíram rockets... Esquecemo-nos de como é dormir”, explica.

À semelhança da esmagadora maioria dos ucranianos, Sofia e Lídia têm estado envolvidas em acções de voluntariado para apoiar o Exército na defesa do território. Por estar grávida, o papel de Lídia tem sido sobretudo o de pôr em contacto pessoas e entidades, construindo uma enorme cadeia de fornecimento e recolha de bens e mantimentos para serem enviados para as várias frentes de combate.

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“Estou a tentar manter rotinas. Quando se está perante circunstâncias muito difíceis é preciso manter a normalidade”, afirma. Lídia admite, porém, que essa não é uma tarefa fácil, apesar de todo o optimismo que traz consigo. “É difícil pensar noutra coisa porque toda a gente me liga a perguntar pelo Gocha, se recebi algum telefonema”, diz.

As preocupações parecem multiplicar-se. Nos últimos dias, Lídia recebeu Ira, uma menina de dez anos que veio de Ochakiv, uma cidade no Mar Negro. Os pais, que são da família de Lídia, estão ambos alistados no Exército ucraniano e não podem tomar conta dela e enviaram-na para Lviv. A criança tem estado nervosa, explica Lídia, mas Alfa, a sua enorme cadela, “é o melhor anti-depressivo”. “Os pais dela prepararam-na durante muito tempo para uma situação destas”, garante.

Os pais de Lídia mostram-se alegres com a visita de Sofia, uma agradável interrupção na tensão acumulada dos últimos dias, mas ambos estão assustados com o que pode acontecer. Anatoli tinha deixado de fumar há vários anos, mas retomou desde que a invasão começou, conta a filha. “A minha mãe não tem falado abertamente, mas está muito cansada e pensa sobretudo na responsabilidade que terá com a neta recém-nascida e comigo”, observa Lídia.

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Sofia considera que “os ucranianos são pessoas diferentes antes e depois de 24 de Fevereiro”. Com o seu filho, Ostap, diz ter optado por contar a verdade acerca de tudo o que se passava no país. Quando as sirenes soavam, explicava-lhe que tinham de ir para o abrigo, onde precisavam de estar silenciosos e de apagar todas as luzes. Sofia não se arrepende da decisão e diz que o filho é “corajoso”. “É dessa forma que construímos a confiança entre nós. Assim sei que, aconteça o que acontecer, ele também me dirá a verdade.”

A “língua do inimigo”

Na Ucrânia, a política, e agora a guerra, parecem invadir todas as esferas, até as mais inesperadas. Ostap é uma criança muito activa e, como muitas outras, o recurso aos vídeos de desenhos animados do YouTube representam uma forma rápida para obter preciosos minutos de acalmia. A maioria dos pais preocupa-se com o acesso das crianças a conteúdos violentos ou sexuais nestas plataformas, mas Sofia e Andrii estão atentos a um factor adicional: a língua.

Uma das suas prioridades é impedir que o seu filho tenha acesso a vídeos em russo, mas, apesar de ambos serem programadores informáticos, não conseguiram encontrar forma de bloquear esses conteúdos. Sofia diz que a proximidade linguística e geográfica entre a Ucrânia e a Rússia faz com que a maioria dos vídeos sugeridos através do algoritmo do YouTube seja proveniente do país que agora invade o seu.

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Optaram por sensibilizar Ostap para evitar a língua “do inimigo”, como lhe explicaram. “Antes da invasão era muito difícil: tínhamos de o convencer, porque havia muitas crianças falantes de russo no jardim-de-infância, até mesmo o melhor amigo é um rapaz que fala russo”, conta Sofia. Nos últimos dias, desde que o filho compreendeu o que se tem passado no país, é ele próprio que desliga os vídeos assim que se apercebe do idioma russo.

Esta é uma discussão presente em muitas famílias ucranianas, assegura Sofia, mas rejeita tratar-se de discriminação. “Não estamos a proteger o ucraniano, estamos a proteger a ideia, o núcleo histórico dos genes do Ostap. A linguagem é a coisa mais importante, se não a protegermos, não sabemos onde pertencemos e quem somos”, explica.

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Aproxima-se a passos largos a hora do recolhimento obrigatório e as despedidas terão de ser rápidas. Neste pequeno apartamento em Lviv o principal desejo é o de que a 15 de Março, dia do nascimento de Katevani, haja razões para celebrar não só este pequeno acontecimento das suas vidas privadas, mas também a vitória da resistência ucraniana. Mas neste domingo frio, Lídia já sabe o que fará depois das 22 horas: “a cidade vai dormir, mas continuamos no telefone, no Facebook, a tentar contactar pessoas.”

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