Morreu o soldado americano que bombardeou Berlim com rebuçados durante a Guerra Fria

Gail Halvorsen tinha 101 anos e “morreu em paz”. No entanto, é provável que os seus feitos perdurem após a sua morte: foi ele que, em 1948, decidiu “bombardear” Berlim Ocidental com doces. Para as crianças da época, ele era um sinal de “esperança”.

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Um grupo de crianças de Berlim de volta do então tenente Gail Halvorsen, em 1949 PhotoQuest/Getty Images

O piloto que, durante as operações de abastecimento a Berlim Ocidental no período do pós-II Guerra Mundial, ganhou fama por fazer chover rebuçados sobre a cidade alemã, durante o bloqueio soviético, morreu na noite de quarta-feira, no Hospital do Vale de Utah, informou a Fundação Gail S. Halvorsen para a Educação na Aviação.

De acordo com a mesma organização, o mentor “morreu em paz rodeado pela maioria dos seus filhos”. Gail Halvorsen tinha 101 anos e uma vida que ficou marcada por um acto de bondade.

Corria o ano de 1948 e Berlim estava no centro da disputa que opunha Estados Unidos e União Soviética, no início da Guerra Fria (1947-1989), que deixou o mundo em sobressalto perante a ameaça que ambas as partes representavam. Foi em Berlim, que britânicos, franceses e norte-americanos se instalaram, criando um enclave na zona sob ocupação soviética, o que viria a fazer nascer a cidade de Berlim Ocidental (1949-1990).

Mas, em 1948, a parte oeste da cidade sofria com o bloqueio dos soviéticos que resultava na escassez de bens de primeira necessidade. Por isso, o gesto de um soldado americano que fez uso do avião de carga da Força Aérea Americana que pilotava para deixar cair sobre a cidade alemã rebuçados, gomas e chocolates viria a despertar a esperança. “O bombista dos doces (nome pelo qual Gail Halvorsen ficou conhecido) deu-nos esperança de tempos melhores”, lembrou Karin Edmond, que tinha sete anos na altura do bloqueio, ao The Outer Banks Sentinel.

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Gail Halvorsen marcou presença nas celebrações do 70.º aniversário do levantamento do cerco a Berlim, em Wiesbaden, Alemanha, a 10 de Junho de 2019 EPA/JOERG HALISCH

Gail Halvorsen nasceu a 10 de Outubro de 1920, em Salt Lake City, mas acabou por crescer nas zonas rurais dos estados do Idaho e do Utah. A sua vida estava ligada, assim, ao que a terra dava, mas o jovem não resistia a sonhar com os céus. Com apenas 21 anos, conseguiu a sua licença de piloto civil; um ano depois, juntava-se à Força Aérea norte-americana, sem imaginar que seria ao seu serviço que se tornaria um herói noutro canto do mundo.

Depois de ter sido destacado para operações de logística e transporte, foi-lhe ordenado que se juntasse à Operação Vittles, que consistia em abastecer a parte ocidental de Berlim por via aérea, depois de ter sido determinado um bloqueio de abastecimentos por vias terrestre e fluvial por parte dos soviéticos. Em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, em que a Alemanha saiu derrotada, Berlim era ainda uma cidade em ruínas e a sobrevivência dos seus habitantes dependia da ajuda externa.

Assim, foram criados três corredores aéreos, cada qual com cerca de 30 quilómetros de largura, que ligavam Berlim a Buckeburgo, a oeste, Frankfurt, a sudoeste, e Hamburgo, a noroeste, tendo sido realizados, entre 26 de Junho de 1948 e 12 de Maio do ano seguinte, mais de 275 mil voos que transportaram quase 2,5 toneladas de bens, sobretudo carvão e alimentos, para a base aérea de Gatow e os aeroportos de Tegel e de Tempelhof.

Durante essa operação, o sonhador Gail pensou numa forma de alegrar a cidade sorumbática, sem acesso a luz eléctrica, para a iluminação e aquecimento (a temperatura média em Berlim no Inverno é de zero graus centígrados), tendo a ideia de, durante a aterragem, lançar embrulhos de lenços de pano que protegiam rebuçados, gomas e chocolates. Não tardou para que as crianças o começassem a chamar de “o bombista dos doces”. E o importante momento não caiu no esquecimento. Karin Edmond, que fala em esperança sempre que recorda esses tempos — viria a emigrar para os Estados Unidos onde encena a situação para as crianças em Manteo, na Carolina do Norte. Já Gail regressaria a um cenário de guerra na Europa, para lançar “esperança” sobre o Kosovo, em 1999.

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Gail Halvorsen (quarto, da esquerda para a direita), com o ex-Presidente dos EUA Ronald Reagan, de visita a Berlim em 1987, onde deixou o apelo: “Senhor Gorbatchev, derrube este muro, secretário-geral Gorbatchev abra este portão”: também na imagem, Nancy Reagan e o capitão Jack Bennet, outro herói dos tempos do bloqueio Thierlein/Ullstein Bild via Getty Images

Por isso, não é de admirar que a sua morte tenha tido reacções de tristeza um pouco por toda a parte. Nas redes sociais, a embaixada alemã em Washington D.C. agradeceu a Gail Halvorsen a “gentileza” e o governador do Utah, o republicano Spencer Cox, fez questão de enaltecer o facto de Halvorsen ter sido “um herói para tantos”. “A sua coragem e compaixão nos tempos mais difíceis têm inspirado gerações e lembram-nos a todos que a amabilidade e a bondade podem vencer”.

Os membros da delegação do Utah no Congresso também prestaram uma homenagem ao militar e o senador Mitt Romney publicou no Twitter uma declaração em que diz que Halvorsen foi exemplo de “espírito de humanidade, compaixão e comunidade”. Já Chris Stewart, membro da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, homenageou o antigo piloto da Força Aérea que, “na hora mais negra do mundo, inspirou bondade e esperança”.

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