“Mais do que a OMS ser questionada, acho que o papel da ciência foi posto em causa”

Cientista mas também diplomata, a directora científica da Organização Mundial da Saúde, Soumya Swaminathan, diz que que “faria sentido do ponto de vista científico controlar a pandemia de covid-19 em todo o mundo ao mesmo tempo”, e isso não acontecerá se as vacinas tardarem em chegar aos países mais pobres.

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Soumya Swaminathan está convencida de que o mundo conhece hoje mais a OMS do que antes da pandemia OMS

Soumya Swaminathan é a chief scientist da Organização Mundial da Saúde (OMS), a directora da Divisão de Ciência. A cientista indiana especialista em HIV-sida e tuberculose tornou-se um dos rostos mais distintivos da nova presença reforçada dos dirigentes da OMS nos media e nas redes sociais neste ano de pandemia. “Sim, houve um esforço” nesse sentido, explicou ao PÚBLICO a partir de Genebra, nesta entrevista tornada possível graças às novas plataformas tecnológicas. Em 2020, esta agência das Nações Unidas foi projectada para o centro das disputas geopolíticas, posta em causa como nunca, com a saída dos Estados Unidos  entretanto corrigida com a entrada do Presidente Joe Biden. Teve de preciso gerir uma crise de saúde global, sem ter, na verdade, nenhum poder para além do de aconselhar e mobilizar o interesse dos cidadãos globais e ser um palco para os interesses geopolíticos.

A Divisão de Ciência tem por missão coordenar a forma como a OMS recolhe provas científicas e cria normas para as mais variadas áreas – desde a genómica à inteligência artificial. Ou à certificação de medicamentos e das vacinas contra a covid-19, um serviço que a OMS presta para muitos dos seus Estados-membros. Foi criada em 2019, e Swaminathan é a sua primeira directora. “É um desafio ser uma mulher cientista, ainda por cima vinda de um país patriarcal, na verdade acho que a maior parte dos países ainda é patriarcal. Temos de dar provas a todo o momento, as pessoas esperam de nós padrões muito mais elevados das mulheres do que homens na mesma posição, e isso acontece também com os cientistas”, conta.

Mas ela já superou essa condição de ter de dar provas a toda a hora. “Acho uma honra tremenda estar nesta posição, recebo muitos emails, correspondência de mulheres mais jovens, cientistas da área da saúde pública, que consideram o meu cargo um sinal de que podem aspirar a tornar-se uma figura importante da saúde pública no mundo. É importante para os jovens, em especial para as mulheres, verem pessoas que admiram, alguém que os inspira a poderem ser iguais um dia”, diz Swaminathan, que era uma das vice-directoras-gerais da OMS quando se juntou à agência, em 2017.

Mas Soumya Swaminathan tornou-se também um dos rostos que pelo menos duas vezes por semana dá a cara em conferências de imprensa da OMS transmitidas pela Internet, com as últimas actualizações, além de vários pequenos filmes na Internet, em que fala do trabalho da OMS e explica o misto de ciência e diplomacia que fazem parte da sua missão – que é também garantir que a Organização Mundial da Saúde é uma instituição do nosso futuro global. “Não sei se as pessoas confiavam mais na OMS antes ou depois da pandemia. O que sei é que que hoje mais pessoas conhecem a OMS”, diz.

Como foi este último ano na Organização Mundial de Saúde? Imagino que tenha sido duro, não só por causa da pandemia, mas porque a OMS foi posta em causa como nunca, com a saída dos Estados Unidos...

Foi difícil, foi diferente de tudo o que já vivemos no passado. Foi um exercício de humildade, mas também foi excitante. Estar na OMS foi a oportunidade de informar o mundo sobre a pandemia, sobre o que se passava e qual devia ser a resposta. É uma enorme responsabilidade, uma corrida para estar sempre à frente, para estar em cima de todos os desenvolvimentos, para termos a certeza de que estávamos a dar a informação certa, o conselho correcto às pessoas. Para ajudar os países, para ajudar quem precisasse do nosso apoio. Para continuar a ter uma mente aberta, e continuar a aprender e a seguir a ciência.

Mas mais do que o papel da OMS ser questionado, acho que foi o papel da ciência que foi posto em causa. Não foi apenas a OMS. O que esteve em causa foi mesmo como recuperar a confiança das pessoas na ciência. E eu diria que a maioria das pessoas apoia e vê valor na ciência. O papel que a ciência teve na resposta à pandemia é a coisa mais positiva que daqui resultou. Não só nas vacinas. Claro que há pessoas que põem em causa a ciência, em toda a parte no mundo. Mas isso é um desafio não apenas para a OMS, mas para todos os que tentam pôr em prática políticas com base na ciência.

Pode descrever o seu trabalho na Divisão de Ciência da OMS, que lidera, e qual a sua importância para os Estados-membros?

A OMS é uma organização governada e conduzida pelas necessidades e pedidos dos Estados-membros. A Assembleia-Geral da Saúde decide quais as prioridades em que devemos focar-nos. Uma das nossas principais funções é a criação de guias de procedimentos, padrões para a saúde global. A Divisão de Saúde foi criada para garantir que, como agência normativa, aderimos aos padrões mais elevados de excelência técnica, relevância, oportunidade, rapidez na reacção. Foi reconhecido que necessitávamos de um foco explícito na qualidade do trabalho normativo e técnico. Mas o nosso objectivo principal é ajudar com as nossas orientações os Estados-membros a atingir os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável 2030.

Por outro lado, é preciso garantir que estamos sempre actualizados para reconhecer avanços científicos e tecnológicos em desenvolvimento, e que estarão prontos dentro de dez a 20 anos, para sermos pró-activos, para saber como podemos influenciar esses avanços a saúde pública, seja na inteligência artificial, na genómica, como para reconhecer quais podem ser os desafios éticos ou travões que precisam de ser tratados a tempo. Ou quais as áreas que têm de ter um quadro regulatório  como o uso da inteligência artificial na medicina. Estas são as áreas em que nos temos focado.

São áreas que podem atrair pressão política dos Estados-membros… Como é que conseguem gerir isto?

Tentamos manter a área de orientação técnica distante da pressão política com os nossos sistemas. As recomendações são emitidas através de pareceres de grupos de trabalho formados por peritos internacionais que juntamos, reconhecidos pelo seu trabalho na área, mas que não devem ter conflitos de interesses. Estamos também a tentar aperfeiçoar o nosso sistema para tentar incluir a sociedade civil no desenvolvimento das orientações. É tudo baseado em factos, na revisão de evidência científica. É um processo muito transparente. Claro que pode ser posto em causa por Estados-membros, e por vezes é-o, mas estamos em posição de defendê-lo por causa de todo este processo.

Com a pandemia, o mundo confia hoje mais, ou menos, na OMS?

Não sei, porque não houve um inquérito global para perceber isso, quanto é que as pessoas confiavam na OMS antes e depois da pandemia. O que sei é que hoje mais pessoas conhecem a OMS. Antes da pandemia não estávamos nas televisões de toda a gente como agora. Diria que uma das coisas positivas que resultou da pandemia é que a OMS está agora no centro das notícias, das actualizações diárias sobre a pandemia, nos media, nas redes sociais. Temos uma presença muito mais elevada agora. E a ciência passou a estar muito mais nas páginas nobres dos jornais e das televisões. Imagino que as pessoas tenham mais confiança, mais informação e conhecimento sobre a OMS e sobre o trabalho que nós fazemos agora do que antes da pandemia. Mas não vi uma sondagem para dizer isto, por isso não posso dar números e percentagens. Mas acho que muito mais pessoas compreendem agora o que faz a OMS.

Houve um esforço consciente da OMS para aparecer mais, para estar mais presente?

Sim, houve. No início, durante os primeiros três a quatro meses da pandemia, tínhamos briefings diários, depois três, agora dois, que mantemos, por mais de um ano. Temos os briefings semanais em que falamos com os Estados-membros, e eles também apresentam alguns estudos de caso dos seus países, e também temos o envolvimento nas redes sociais. Os nossos principais parceiros são os ministérios da Saúde, mas agora estamos a conseguir falar muito mais com as pessoas directamente.

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"O que sei é que hoje mais pessoas conhecem a OMS do que antes da pandemia", diz Soumya Swaminathan Fabrice Coffrini/Pool via REUTERS

Se aparecesse um novo vírus hoje, que fosse considerado uma ameaça para o mundo, a OMS estaria mais forte e mais capacitada para activar as defesas mundiais? O que aprendemos?

Acho que sim. Com o último grande surto de ébola na África Ocidental (2014), foi criado o Programa de Resposta a Emergências na OMS. Estamos numa posição ainda mais forte agora, mas não tenho a certeza de que possamos dizer o mesmo para todos os Estados-membros. Não basta que a OMS esteja mais forte, a resposta a uma pandemia tem de ser ao nível dos países. Se todos não tiverem reforçado os seus meios de resposta, não estaremos capazes de responder melhor.

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Administração das primeiras vacinas na Costa do Marfim, entregues através da iniciativa COVAX EPA/LEGNAN KOULA

Tem receio deste Verão? Haverá muita pressão para começar a haver viagens entre países, antes de a população em geral estar imunizada e assim o ciclo de novas variantes do vírus, surtos e a necessidade de haver novos confinamentos vai-se repetir? Ou acha que a situação estará controlada?

É muito difícil de prever. No ano passado, o que se viu foi este ciclo de altos e baixos, confinamento, levantamento das restrições e depois necessidade de novos confinamentos. Agora a campanha de vacinação já começou, mas claro que só em alguns países é que arrancou em grande escala. No resto dos países vai levar algum tempo até ganhar escala. Durante este Verão é importante que os países mantenham um alto nível vigilância e todas as medidas de saúde pública. Não de confinamento, mas os governos devem continuar a tentar diagnosticar e detectar a origem das infecções, a isolar e a fazer quarentenas dos contactos das pessoas infectadas, pelo menos até ao fim de 2021, até termos vacinado uma quantidade de pessoas suficiente dos grupos prioritários, até conseguirmos reduzir a mortalidade. Quanto isso estiver feito e a doença se tornar menos perigosa, então os países podem começar a abrir gradualmente.

Há muitas expectativas em torno da iniciativa COVAX, e também muita insatisfação. Vê hipóteses significativas de que conseguiremos imunizar pelo menos as populações prioritárias em todo o mundo ainda este ano?

Sim, as expectativas são muito elevadas, mas se virmos em termos históricos, o tempo que levou para as vacinas irem de países de rendimentos altos para países de rendimentos baixos foi normalmente de cinco, ou dez anos. Os antirretrovirais para o HIV levaram 15 anos a chegar aos países mais pobres. Comparado com isso, demorou dois meses para uma vacina ir dos países de altos rendimentos para um de baixos rendimentos [as primeiras doses de vacinas adquiridas ao abrigo da iniciativa COVAX, no Gana e na Costa do Marfim, foram administradas a 1 de Março]. Isto é um desenvolvimento muito positivo, que aconteceu por causa da COVAX, e estou muito confiante que conseguiremos atingir o objectivo de vacinar as populações prioritárias até ao fim de 2021 e continuar em 2022.

Na sua experiência, o que está a impedir as empresas, e os países, de partilharem as suas vacinas com os países mais pobres, ou darem licença para serem fabricadas noutros países? Nacionalismo, ganância, medo?

O grande problema é que a quantidade de vacinas é limitada. Os produtores não conseguem fabricar maia. É pouco realista esperar que se conseguirá ter milhares de milhões de doses mais. O que é necessário é uma distribuição mais justa das vacinas, para proteger as populações vulneráveis. Julgo que na segunda metade deste ano teremos muito mais vacinas, e todos os países estarão mais bem abastecidos. O que se está a passar é que alguns países têm mais vacinas do que outros. Depois de vacinarem as suas populações prioritárias, eles vão partilhar, vão doar doses através da COVAX, para que outros países em África possam vacinar as suas populações prioritárias.

Acho que é natural que todos os líderes queiram proteger as suas populações, não há nada de errado nisso. Não queremos que ninguém negligencie as suas populações, só queremos encontrar uma maneira de haver um pouco mais de justiça do que o que se está a passar agora. “Nacionalismo das vacinas” é algo com uma conotação muito negativa, mas acho que os líderes políticos estão a fazer aquilo que os seus concidadãos esperam que eles façam. É preciso ter uma discussão, perguntar aos cidadãos se não podemos partilhar as nossas vacinas com outros países, depois de termos imunizado toda a nossa população prioritária. Mesmo que isso implique esperar alguns meses para ter toda a população adulta do nosso país vacinada.

Mas as farmacêuticas poderiam mostrar mais alguma boa vontade na transferência de tecnologia para outros países, onde haveria capacidade para fabricar as vacinas, não?

Absolutamente. Isso é algo em que estamos a trabalhar, para ver se poderá haver transferência de tecnologia de empresas que desenvolveram com sucesso vacinas contra a covid-19 para produtores no mundo em desenvolvimento, para aumentarmos as quantidades de vacinas disponíveis. Essa é uma solução viável tecnicamente, e estamos a trabalhar para isso.

A pandemia vai durar mais por causa destas desigualdades na distribuição das vacinas?

Sim, é possível, porque agora estamos a ver todas estas variantes, que por vezes respondem menos aos anticorpos… Isso pode permitir que a pandemia continue em algumas partes do mundo, enquanto outras zonas ficam protegidas. Por isso faria sentido do ponto de vista científico e epidemiológico tentar controlar a pandemia em todo o mundo ao mesmo tempo.

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