Braga: Casas de Moura Coutinho dão lugar a residência para idosos de 12 milhões

Investimento reparte-se por três edifícios – um novo, no lugar de algumas das casas desenhadas pelo nome maior da arquitectura bracarense da primeira metade do século XX, e dois que aproveitam os edifícios já de pé. Aprovada pela Câmara Municipal, com parecer favorável da Direcção Regional de Cultura do Norte, obra deve estar concluída em 2022.

urbanismo,patrimonio,local,arquitectura,braga,
Fotogaleria
Edifícios antes da demolição
urbanismo,patrimonio,local,arquitectura,braga,
Fotogaleria
Edifícios já demolidos

Em Dezembro, tornou-se fácil reconhecer que algo novo iria nascer na esquina poente das ruas Gabriel Pereira de Castro e Júlio de Lima, na freguesia de São Vicente, junto ao centro histórico de Braga: o estaleiro de obra apareceu montado, o braço da retroescavadora movimentava-se para um lado e para o outro e as casas aí situadas, ao abandono, transformaram-se em escombros. As casas em questão, de três pisos, remontam à década de 30 do século XX e foram assinadas por Moura Coutinho, arquitecto que legou à cidade nortenha obras como o Theatro Circo (1915) e o edifício do Banco de Portugal (1928). A intervenção suscitou polémica, nomeadamente nas redes sociais, com Diogo Vieira, cidadão de São Vicente, a classificá-la de “destruição do património”. “Está-se a perder parte da história”, diz ao PÚBLICO. “Nem as fachadas ficam para preservar a memória”, diz.

A obra está aprovada desde 30 de Abril de 2018, quando foi discutida e votada numa reunião do executivo municipal. O espaço vazio vai dar lugar a um dos três volumes de uma nova residência para idosos. Os outros dois ficarão nos edifícios do gaveto das ruas de São Vicente e Júlio de Lima, também dos anos 30, mas assinados por João Pereira Braga, que trabalhava então com Moura Coutinho, e da fachada norte da rua de São Vicente. O investimento, de 12 milhões de euros, provém da SKTO – Societé Industrielle de Services Immo, entidade que lançou um projecto semelhante no Porto, e a arquitectura é do atelier de Nuno Valentim, também a cargo das requalificações do Mercado do Bolhão e do Palácio da Bolsa, no Porto. “Um edifício tem 56 quartos, outro 12 e outro dez. Dá um pouco mais de 100 camas”, diz ao PÚBLICO Nuno Valentim, co-autor do projecto com Frederico Eça e Juliano Ribas. “Poderá acolher idosos dependentes e de idosos independentes. Até pode ter uma secção específica para doentes de Alzheimer. E vai criar cerca de 30 a 60 postos de trabalho”, acrescenta.

Trabalho de analogia

Com conclusão prevista para 2022, a obra prevê a manutenção de “dois edifícios de maior valor” na rua Júlio de Lima, “um jogo de reinterpretação arquitectónica” nos imóveis em ruína da rua de São Vicente e a alteração do conjunto demolido, que, para Nuno Valentim, tinha “muito menor qualidade arquitectónica e construtiva” face à envolvente. “Nas questões do património das cidades, as discussões são sempre muito apaixonadas, porque estamos a mexer com a sua alma. Mas não podemos ser acríticos em relação ao que herdámos. Nem tudo o que Moura Coutinho fez é extraordinário”, defende o professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, especializado em reabilitação de património.

Foto
Alçados do projecto

Nuno Valentim realça, porém, que a nova construção, em “granito amarelo e maciço”, procura dialogar com o outro conjunto de Moura Coutinho na rua Júlio de Lima, da década de 20, pintado a cor de rosa, que classifica de “notável”. “É um trabalho de analogia. Sem mimetismos, fizemos uma proposta que vá buscar relações com a envolvente. É um trabalho de inserção no tecido histórico bracarense”, explica.

Com três pisos acima do solo (mais um recuado) e dois no subsolo, o conjunto de edifícios destinado à residência para idosos é olhado pelo vereador municipal para o Urbanismo com um “factor de vivificação” de um “quarteirão arruinado há mais de uma década”, respeitando a “métrica dos imóveis envolventes”. Convicto de que a “qualidade arquitectónica” do conjunto demolido é inferior à dos edifícios em redor, o vereador avisa que a obra prevê a reintegração dos “elementos mais notáveis da alvenaria de granito” e do painel de azulejos existentes nas fachadas demolidas.

O vereador salienta também que o projecto mereceu o parecer favorável da Direcção Regional de Cultura do Norte, face à candidatura que houve para classificar aquela área. Esse documento, emitido a 27 de Fevereiro de 2018, refere que “não há nada a objectar” ao projecto para “reconstrução dos edifícios do topo sul-poente do quarteirão em causa”.

“O património não é só grandes edifícios”

O conjunto urbano agora alvo de intervenção é o resultado de um empreendimento que Júlio de Lima, o homem mais rico de Braga na primeira metade do século XX, iniciou em 1922, indica Rita Martins, autora de uma dissertação de mestrado sobre Moura Coutinho, de 2010. As casas demolidas, no lado poente da rua, integram a ala dita de “pobres”, por terem “betão à vista, sem pintura ou artifícios”, apesar do interesse por “elementos geométricos de tendência art déco”, escreveu a hoje directora pedagógica e professora de História da Arte na cooperativa Árvore, no Porto.

Contactada pelo PÚBLICO, Rita Martins reconheceu não saber se “era possível manter pelo menos as fachadas” das casas demolidas, mas disse estar contra a “destruição completa” de edifícios que “marcam um período complexo sob o ponto de vista social e económico”. O trabalho de Moura Coutinho naquela rua mostra que o património não se faz apenas “de grandes edifícios ou monumentos, mas também daquilo que define o dia-a-dia e a vida das pessoas”, prosseguiu.

Rita Martins considera ainda que a obra de Moura Coutinho em Braga, “arquitecto auto-didacta” e detentor de uma “biblioteca gigantesca”, que viveu entre 1872 e 1954 uma “biblioteca gigantesca”, merecia um roteiro exclusivo. “Produziu muito e com qualidade, sobretudo nas décadas de 20 e de 30, rodeado de pessoas com conhecimento de urbanismo e arquitectura. Era um homem viajado e culto”, esclareceu.

Sugerir correcção
Comentar