Os tectos do Palacete Júlio de Lima caem enquanto a disputa pela sua posse se arrasta

No piso superior da casa do primeiro quartel do século XX, erguida por Júlio de Lima, homem de negócios que deixou marca em Braga, vêem-se tectos com fendas e fragmentos de gesso no soalho, face à humidade. O edifício degrada-se enquanto a sua posse se decide na Justiça. O Tribunal de Braga proferiu sentença na segunda-feira, mas haverá recurso.

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Nelson Garrido
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A casa é grande e os corredores longos: de um lado e do outro vêem-se portas altas, esguias e empoeiradas. Quando os olhos se erguem, há tectos revestidos a madeira e a gesso: os de madeira ainda mascaram o desgaste, os de gesso nem por isso. Nas divisões do piso superior, fendas salpicam os tectos pintados de branco e os fragmentos de gesso espalham-se pelo soalho. “A humidade está a fazê-los cair todos. Estamos com muito medo do próximo Inverno. Se a situação continuar assim, pode haver danos irreversíveis”, diz Fernando Mendes, membro dos Amigos do Palacete Júlio de Lima, grupo de cidadãos que alerta para a degradação do edifício há cerca de três meses.

Desabitado desde 2013, o palacete onde viveu Júlio de Lima, homem de negócios e benemérito de Braga na primeira metade do século XX, impõe-se no seio de um verde logradouro na zona norte da cidade. As fachadas amareladas exibem uma mistura de estilos arquitectónicos, como a arte nova, mas o exterior do imóvel é uma preocupação menor face ao que se vê no interior, assume Fernando Mendes. Os Amigos do Palacete ponderam mesmo recorrer a baldes e a bacias no próximo Inverno, para impedirem eventuais danos no piso inferior. “Vamos tentar apanhar a água que cai aqui, para não passar para o andar de baixo”, explica o cidadão.

O grupo já pediu à Câmara Municipal de Braga para fazer obras, sobretudo no telhado, mas até agora as respostas foram negativas. Bem cultural de interesse municipal desde 2018, como parte de um conjunto que inclui ainda as casas do arquitecto Moura Coutinho, edificadas nas décadas de 20 e de 30 do século XX na rua em frente, o palacete é privado. “A Câmara diz que não pode fazer nada. Só interveio aqui há uns anos, quando parte do arvoredo estava a cair para o passeio, público”, esclarece Fernando Mendes.

Um entrave jurídico

A casa é propriedade privada, mas não se sabe ao certo de quem. Assim é porque há um processo em tribunal que opõe a família de Maria José da Silva Branco Ferro, proprietária até 2016, o ano em que morreu, a Carla Cunha, última empregada doméstica de Maria José, que se assumiu como proprietária depois de um alegado testamento escrito pela sua empregadora,em 07 de Dezembro de 2011.

Os três irmãos de Maria José, sobrinha-neta de Júlio de Lima, interpuseram uma acção no Tribunal de Braga em Fevereiro de 2016, contestando a validade do documento. Depois da audiência ter sido concluída em Outubro de 2019, a sentença foi conhecida na segunda-feira, dando razão à família. A Justiça considerou o testamento nulo, esclareceu ao PÚBLICO fonte da família de Maria José. Perante a sentença desfavorável, Carla Cunha informou o PÚBLICO que vai recorrer da decisão.

A demora do poder judicial em tomar uma decisão, quando o artigo 607.º do Código de Processo Civil indica que a sentença deve ser proferida “no prazo de 30 dias” após o encerramento da audiência, é, para Fernando Mendes, o factor que mais tem contribuído para a degradação do edifício.

O litígio em curso é também a principal justificação para a ausência de intervenção por parte da câmara municipal, assumiu o seu presidente. Ricardo Rio visitou o imóvel em 14 de Setembro e disse ao PÚBLICO que está prevista uma vistoria para se elaborar um “caderno de encargos com as intervenções necessárias”. A acção vai ser realizada em conjunto com a Direcção Regional de Cultura do Norte, que, em 2017, colocou o palacete em vias de classificação patrimonial, mas está ainda por agendar, acrescentou Rio. A autarquia pondera até financiar “obras de urgência”, mas só quando tiver “um proprietário com quem interagir”, esclareceu ainda o presidente.

Mais do que uma casa

A casa em disputa, de autor incerto, é uma das marcas de Júlio de Lima que sobrevive na Braga contemporânea. “Aquele edifício é do final da década de 1910 - 1918 ou 1919 - ou então, o mais tardar, de 1920 ou 21”, diz ao PÚBLICO o historiador de arte Eduardo Pires de Oliveira, autor de um livro de 70 páginas sobre a personalidade, com publicação prevista para este ano, mas adiada devido à pandemia de covid-19.

Nascido em 1859, nos Arcos de Valdevez, Júlio de Lima chegou pobre a Braga, mas casou com uma mulher “muito rica” e herdou todos os bens dela, após a sua morte. Capaz de enriquecer ao “diversificar o dinheiro em aplicações financeiras, em terrenos, em agricultura e na indústria”, Júlio de Lima construiu a casa e financiou depois as casas de Moura Coutinho, na rua que mandou abrir, em frente. “A casa é de alguém que quer mostrar que é rico. Aquilo é uma casa com uma rua em frente para se ver a casa”, diz Eduardo Pires de Oliveira.

Sendo o “homem mais rico de Braga na primeira metade do século XX”, Júlio de Lima ordenou as construções da escola primária de Adaúfe, terra da primeira esposa, e do lago no Parque da Ponte, financiou melhoramentos no Bom Jesus do Monte e teve uma acção assistencial, nomeadamente no Asilo de S. José. “É urgente fazer-se um doutoramento sobre Júlio de Lima”, conclui o historiador.

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