A objecção à cidadania e desenvolvimento

Confesso a minha pena por ver um assunto destes gerar tanta fervura numa parte da sociedade portuguesa (mais envelhecida e masculina, é certo). Em todo o caso, penso que este é o caminho certo: ensinar Portugal a pensar criticamente.

Tem sido tema de debate a unidade curricular do ensino público obrigatório, “Cidadania e Desenvolvimento”, na qual se pretende transmitir aos alunos e alunas noções básicas de vida em sociedade e de respeito pelo outro.

Se, do ponto de vista teórico, seria de esperar que tal unidade curricular fosse tranquilamente aceite num país dito desenvolvido do mundo ocidental, Portugal, em pleno século XXI, a prática revelou-se diferente.

O ponto de partida para a polémica é uma querela, agora em contencioso judicial, entre pais de alunos de uma escola de Famalicão e a escola e a secretaria de Estado da Educação. Esses pais, por não gostarem dos conteúdos de Cidadania e Desenvolvimento, obrigaram os filhos a faltar à dita disciplina. Como ela é obrigatória, os alunos (com bom aproveitamento escolar em todas as outras unidades curriculares), chumbaram por faltas.

Independentemente da luta judicial e sua resolução futura, a questão central aqui é saber:

1. Se faz sentido o ensino público obrigatório ter tal disciplina;

2. Se ela deve ser obrigatória ou optativa.

Os objectores de consciência à Cidadania e Desenvolvimento argumentam que esta unidade curricular impõe uma visão do mundo, uma ideologia, que não é partilhada por todos, logo não deve ser obrigatória. Mais, dizem que não compete ao Estado inculcar qualquer noção comportamental ou moral às crianças, apenas os pais têm esse direito.

Do meu ponto de vista, a argumentação usada por estes objectores é fraca, equívoca e reveladora de uma falta de crença na força das suas convicções. A saber:

1. Tudo na vida tem uma dimensão ideológica. Atacar uma disciplina na base de que ela divulga uma dada concepção ideológica, em vez de outras, é uma falácia. Todas fazem isso! Porque se estuda numeração árabe e não romana? Porque se fala de Frei Luís de Sousa e não de Vitor Silva Tavares? Porque se fala de ciência e não de criacionismo ou terra-planismo? Que disciplinas se leccionam? Que conteúdos se dá em que idades? Quais são mais aprofundados? Porquê estudar inglês e não mandarim ou japonês? Porque não estudar ciências sociais desde o 5.º ano de escolaridade? São tudo opções ideológicas que têm de ser feitas por quem de direito, neste caso, o Estado democrático, através do Ministério da Educação. Estas escolhas têm impacto na formação dos alunos? Sim, e é suposto que sim.

2. Olhando para os conteúdos leccionados em Cidadania e Desenvolvimento, torna-se mais esdrúxula esta objecção. Nesta disciplina pretende-se que os alunos aprendam a pensar (ter pensamento crítico) e a agir sobre: empreendedorismo; literacia financeira e educação para o consumo; igualdade de género; interculturalismo; desenvolvimento sustentável; direitos humanos; educação ambiental; saúde; mundo do trabalho; risco; segurança, defesa e paz; bem-estar animal; voluntariado; média; instituições e prática democrática; sexualidade; segurança rodoviária. Vendo esta lista, percebe-se que ela foi elaborada com rigor. Porque vai muito ao encontro dos objectivos de desenvolvimento sustentável definidos pelas Nações Unidas (sendo o desenvolvimento sustentável e as questões ambientais fulcrais para o futuro da humanidade) e abarca uma série de tópicos que Portugal precisa de desenvolver, face aos países mais desenvolvidos da Europa, como o empreendedorismo, o voluntariado, a literacia financeira e de consumo, a prática democrática, os direitos humanos, a igualdade de género ou a segurança rodoviária.

Portugal tem baixo nível de capital social, alta desigualdade entre géneros, forte sinistralidade rodoviária (apesar de fortes progressos), corrupção, baixo voluntariado e baixo empreendedorismo de perfil elevado. Esta disciplina vai no sentido de colmatar essas falhas. Mais, posso acrescentar que os conteúdos aí desenvolvidos são coincidentes com os determinantes da felicidade individual e colectiva, pois que os estudo científicos na área do bem-estar e felicidade demonstram que quanto mais participarmos na sociedade, quanto mais democracia houver, quanto menor for a discriminação entre os géneros, quanto mais consciente forem as decisões de consumo e produção, quanto maior a paz e menores os conflitos, quanto maior for a liberdade de pensar e decidir, quanto mais livres e conscientes forem as escolhas sexuais e reprodutivas, maior será a felicidade dos povos. Quem objecta a isto?

3. Finalmente, vem a parte da fraqueza. Quem objecta à Cidadania e Desenvolvimento, diz que não quer que as suas crianças sejam expostas a ideias contrárias às que querem incutir nelas. Primeiro, em sociedade (a não ser nas mais pequenas, fechadas e obscuras), nunca há um monopólio parental na inculcação de ideologias e valores. Segundo, ter medo de que a exposição a ideias diferentes vá “desviar” os seus educandos do “bom caminho” só prova como a doutrinação a que pretendem sujeitar as suas crianças é fraca. De facto, quem quer educar no sentido dos dogmas, corre sérios riscos de que a aprendizagem do pensamento crítico destrua essa possibilidade. É que ninguém escolhe o dogma se for ensinado na pluralidade, nem visões simplistas do não conhecido se for educado na ciência. É isto que mais assusta estes objectores.

Confesso a minha pena por ver um assunto destes gerar tanta fervura numa parte da sociedade portuguesa (mais envelhecida e masculina, é certo). Em todo o caso, penso que este é o caminho certo: ensinar Portugal a pensar criticamente. E caso os tribunais (que ainda são entidades muito conservadoras) viessem a chumbar a obrigatoriedade de Cidadania e Desenvolvimento, proponho, desde já, que se crie a disciplina obrigatória, desde o 1.º ano de escolaridade, de Filosofia. É que, essa, independentemente de tudo o resto, sempre devia ter existido, e é o lugar certo para se ensinar e discutir todas estas temáticas práticas dadas em Cidadania e Desenvolvimento e acrescentar a história das religiões e dos valores morais.

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