O sorriso por detrás da máscara

Hoje tenho muito mais curiosidade em conhecer os rostos por detrás das máscaras. Por isso, observo-os com muita atenção. Concentro-me nos olhos e descubro que a maioria de nós os tem muito bonitos.

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Joshua Roberts/Reuters

São seis e pouco da manhã e ele ali está, pequenino, dois anos, de pé, ao lado do pai, da mãe e do irmão mais velho. Agarrado a uma mochila com rodinhas, imita os gestos da restante família, puxando-a à medida que a fila — sempre respeitando o distanciamento social — vai avançando. Embora não seja necessário, também ele tem no rosto a máscara social, do Homem-Aranha.

Com o passo periclitante de quem ainda usa fralda, vai olhando à volta, porque tudo é novo. As hospedeiras de terra perguntam em que zona do avião se sentarão os passageiros, separando-os conforme as respostas, de maneira a que o embarque se faça ordeiramente e com pouco contacto social. A família de quatro permanece à nossa frente. E o mais pequeno lá continua olhando curioso para tudo. Trocamos um olhar e sorrio-lhe. Sem efeito. O sorriso fica por detrás da máscara. Aceno-lhe. Será que me sorri?

A cada momento, a mãe ajeita as máscaras dos dois filhos, para que permaneçam assentes nos seus narizinhos. Até que passa a mão pelo queixo do pequenino, uma e outra vez. Comenta qualquer coisa com o pai. Este tira um lenço do bolso e repete o gesto. Desta vez, rápido, pois tira e põe a máscara ao menino. Limpa-lhe a baba. Por segundos, vê-se todo o rosto da criança e descubro surpreendida que tem uma chuchinha na boca, vermelha, como o fato do Homem-Aranha. Naquele momento, voltamos a trocar olhares e faço um movimento com a cabeça, como quem diz “olá”, que ele imita fazendo-me sorrir. Desta vez, puxo a máscara para baixo e mostro-lhe os dentes, num movimento brusco de quem comete uma infracção.

Não é fácil encontrarmos os outros com um pano no rosto. Assim como não é fácil não poder tocar-lhes. Uma cotovelada é só ridículo. Antes espirrávamos para a mão e estendíamo-la para cumprimentar. Hoje espirramos para o cotovelo e esfregamo-lo no outro… Por isso, continuo a preferir um passou-bem, de preferência de aperto vigoroso. Contudo, impossibilitada de o dar, faço vénias como os orientais. Por vezes, ponho a mão no peito como que a transmitir como foi gratificante para mim estar com aquela pessoa, mesmo de máscara posta. Não que não possa verbalizá-lo, mas as nossas expressões e os nossos gestos reforçam sempre o que queremos dizer. “Não se vê, mas estou a sorrir, só de o ouvir”, digo, como quem põe legendas num filme.

Um dos privilégios desta profissão é conhecer pessoas novas. Há sempre uma máscara, a do entrevistado que quer passar uma imagem ou uma mensagem. É preciso ir além da sua intenção. Fazer perguntas, ouvir, separar o trigo do joio. Hoje tenho muito mais curiosidade em conhecer os rostos por detrás das máscaras. Por isso, observo-os com muita atenção. Concentro-me nos olhos e descubro que a maioria de nós os tem muito bonitos. E, por isso, imagino rostos belos, simétricos, de linhas suaves, até que a máscara cai e o nariz adunco ou os lábios finos estragam tudo.

Aparentemente, a máscara veio mesmo para ficar. Ao espelho, escondida atrás dela, concentro-me nos meus olhos e faço experiências: sorrio levemente — não se percebe que estou a fazê-lo; sorrio normalmente — nada; sorrio profusamente — há um leve movimento das bochechas, que sobem e fazem aquelas rugas no canto dos olhos, as chamadas “de expressão”. Será que o meu interlocutor as vai reconhecer? Talvez o melhor seja dizer: “Estou a sorrir.” Ou dar uma leve gargalhada, não sei. Enquanto isso, vou continuando a treinar as minhas aptidões sociais e imagino as crianças, pequeninas como a da chuchinha vermelha e máscara do Homem-Aranha, a crescer de sorriso escondido. Será que vão saber sorrir? Claro que sim. Será que vão saber quão importante é o toque? Claro que sim. Mas como serão as suas interacções sociais?

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