Martas poderão ter transmitido o novo coronavírus a um funcionário de uma exploração

Para controlar a situação, o Governo dos Países Baixos vai fazer testes de anticorpos às martas nas explorações.

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Há cerca de 140 explorações de martas nos Países Baixos para a indústria das peles Pdreijnders

Uma investigação – que ainda está a decorrer – sugere que martas de uma exploração nos Países Baixos transmitiram o coronavírus SARS-CoV-2 a um funcionário, anunciou em comunicado o Ministério da Agricultura, Natureza e Qualidade Alimentar dos Países Baixos. No comunicado, refere-se que as martas com covid-19 podem ser assintomáticas e que a transmissão fora dos pavilhões onde estão esses animais estão será “pouco significativa”. O funcionário já recuperou. Entretanto, já foram criadas medidas pelo Governo holandês para controlar a situação.

Os surtos de covid-19 em explorações de martas nos Países Baixos foram relatados pela primeira vez em Abril, depois de os seus proprietários se terem apercebido de que alguns animais tinham dificuldades respiratórias, refere a agência Reuters. Isto levou a uma investigação mais alargada nas explorações onde vivem esses animais.

Para isso, analisou-se o código genético do vírus em diferentes animais e pessoas ligadas às explorações. Ao compararem esse código, os cientistas podem criar uma “árvore genealógica” do vírus e ter mais conhecimentos de quando e onde as pessoas e os animais foram infectados.

Desta forma, verificou-se que o vírus detectado num funcionário de uma exploração tinha semelhanças com o vírus que tinha sido encontrado numa marta da mesma exploração. “Com base nesta comparação e na posição da configuração do vírus na árvore genealógica, os investigadores concluíram que é provável que um funcionário numa exploração infectada possa ter sido infectado por uma marta”, refere-se no comunicado.

“Estes novos resultados têm um grande impacto nos proprietários e funcionários das explorações de martas e das suas famílias, bem como das comunidades locais”, afirmou no comunicado Carola Schouten, ministra da Agricultura dos Países Baixos.

As explicações

Wim van der Poel, responsável pela área de vírus emergentes e zoonoses do Centro de Investigação Bioveterinária da Universidade de Wageningen (Países Baixos), também explicou ao jornal espanhol El País aquilo que pode ter acontecido: “Provavelmente, neste caso específico, trata-se de um contágio de um animal para uma pessoa porque as sequências do genoma do vírus de ambos são quase idênticas”, esclareceu. “Para se ter a certeza absoluta, teríamos de fazer o mesmo – sequenciar o código genético do vírus – em amostras extraídas de todas as pessoas que trabalham ou têm uma ligação à exploração e que também estiveram doentes.” O cientista que também está a analisar a prevalência do vírus nas explorações indica ainda que foram observadas mutações genéticas nos vírus das martas que parecem indicar uma adaptação do vírus a este novo hospedeiro.

Lucy van Dorp, geneticista da University College de Londres, está a investigar bases de dados genómicas de animais com coronavírus que se sejam próximas do SARS-CoV-2 e refere que os coronavírus são uma família de vírus em circulação em muitas espécies, incluindo morcegos, vacas, porcos, girafas ou humanos. “O SARS-CoV-2 é um tipo muito particular de coronavírus e, com base na afinidade da ligação da proteína da espícula do SARS-CoV-2 [que o vírus usa para entrar nas células], parece haver uma elevada probabilidade de que o vírus pode infectar uma ampla variedade de mamíferos, incluindo as martas, para as quais agora temos fortes provas de infecções naturais”, explica ao PÚBLICO.

A geneticista também realça que a sequência do genoma do vírus que infectou as martas é muito semelhante às dos vírus que circulam em humanos. “Por isso, é muito provável que as martas possam servir de reservatório de SARS-CoV-2”, refere. “A questão-chave é se os vírus nesses animais possam ser transmitidos naturalmente a outros animais ou aos humanos. Alguns relatos nos Países Baixos sugerem que isso possa acontecer.”

Sobre se esta foi a primeira vez que um animal transmitiu o SARS-CoV-2 a humanos (depois da transmissão original), Lucy van Dorp diz que agora é impossível sabê-lo. Além disso, diz que os padrões dos genomas do SARS-CoV-2 já identificados em cães e tigres podem ser consistentes com as observações nos genomas do vírus nas martas. E isso pode permitir tirar conclusões semelhantes.

As investigações às explorações de martas nos Países Baixos ainda não terminaram. Para esclarecer os resultados obtidos até agora, os cientistas continuam precisamente a mapear a árvore genealógica do vírus em pessoas infectadas numa área próxima desta exploração de martas. 

Quanto ao risco de transmissão dos animais para os humanos fora dos pavilhões onde estão as martas, o Instituto Nacional para a Saúde Pública e Ambiental dos Países Baixos refere que é “pouco significativo”. Na avaliação de risco que realizou, este instituto holandês diz não ter encontrado vestígios do coronavírus em amostras de ar fora dos pavilhões.

Possível transmissão a partir de gatos

Mesmo assim, o Governo holandês informou que está a introduzir novas medidas relativas a este assunto. Por exemplo, serão feitos testes de anticorpos a todas as martas de explorações nos Países Baixos. Se um caso for detectado numa exploração, os funcionários terão de usar equipamentos de protecção adequados e não serão permitidos visitantes nessas explorações infectadas.

Há aí cerca de 140 explorações de martas com aproximadamente 800 mil fêmeas férteis, de acordo com a Federação de Criadores de Animais para Peles citada pelo jornal espanhol El País. As martas são usadas pela indústria das peles. Depois de pressões de activistas de direitos dos animais, o Governo holandês proibiu novas explorações de martas em 2013 e disse que as existentes tinham de fechar até 2024, segundo a Reuters. 

Quanto a outros resultados desta investigação, encontrou-se uma forte semelhança entre os vírus detectados em duas propriedades diferentes e anticorpos em três de 11 gatos de uma das explorações infectadas. Portanto, também se pretende analisar melhor o potencial de transmissão do vírus entre as explorações através dos gatos. Os proprietários são mesmo aconselhados a não deixarem entrar nem sair esses felinos das explorações. O comunicado não se adianta como é que as martas ficaram infectadas. 

Albano Beja Pereira, investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, da Universidade do Porto, alerta mesmo para que a transmissão deste vírus para as martas possa ter vindo dos gatos. “Tendo em conta que as martas estão em cativeiro, só pode haver dois suspeitos de transmissão: humanos ou os gatos que vivem nessas explorações”, constata. “Neste caso, foram detectados gatos [com testes] positivos e nenhum humano, além do que foi contaminado. Assim, numa primeira análise o iniciador da cadeia de transmissão só pode ter sido o gato.”

O investigador realça que nem os humanos nem os animais domésticos estão livres de ser infectados por qualquer tipo de coronavírus. E, como os gatos vivem frequentemente em comensalismo nas explorações agrícolas – isto é, controlam populações de roedores que podem ser fonte de outras doenças –, os proprietários das explorações toleram-nos. “Assim, os gatos entram e saem das explorações e, caso não sejam castrados, também respondem ao cio percorrendo grandes distâncias”, relata o cientista, acrescentando que o gato é um caçador nato e nocturno e tende a procurar as presas onde elas estiverem. “Ora, onde estão as presas estão mais gatos, sobretudo os assilvestrados, mas também o gato mimado com comida no prato e vacinas em dia. Estes ajuntamentos sem controlo são o ideal para as cadeias de transmissão, porque no final da noite todos regressam ao seu pouso inicial, o que para muitos é o colo dos donos e para outros são as explorações animais.”

Dos laboratórios aos jardins zoológicos

As martas e os gatos não são casos únicos. Outras investigações já mostraram que outros animais podem ser infectados pelo SARS-CoV-2. Em experiências em laboratório viu-se que, além dos gatos, morcegos (como o Rousettus aegyptiacus), furões, macacos Rhesus e hamsters são susceptíveis ao SARS-CoV-2. Fora dos laboratórios, já se encontraram cães e gatos domésticos, bem como tigres e leões em jardins zoológicos infectados com o vírus, de acordo com o site da revista Nature. Mesmo assim, o Ministério da Agricultura dos Países Baixos assinala que o risco de uma pessoa ser infectada por animais domésticos é “pequena”.

Outra das grandes questões tem sido perceber como o SARS-CoV-2 passou inicialmente para os humanos. Há provas de que existe uma ligação entre este vírus e outros coronavírus encontrados nos morcegos e que estes animais podem ter sido a origem do vírus. Mas como saltou para as pessoas? Tem-se sugerido que uma espécie intermediária tenha feito a passagem do SARS-CoV-2 dos morcegos para os humanos. Já se sugeriu que fosse o pangolim, mas também já houve quem rejeitasse essa hipótese.

Vários cientistas estão a estudar a origem do vírus através de estudos computacionais ou celulares, mas esta tem-se mostrado uma tarefa difícil. “É possível que não a encontremos. Na verdade, seria uma grande sorte se o conseguíssemos”, afirmou também ao site da Nature Lucy van Dorp, que está a tentar descobrir com a sua equipa qual pode ser o hospedeiro intermediário. A geneticista disse ainda ao PÚBLICO que há dois tipos de coronavírus recolhidos em morcegos que são muito próximos do SARS-CoV-2, o que reforça a hipótese de que estes animais são o hospedeiro inicial. “Mas ambos são demasiado distantes geneticamente para [os morcegos] serem considerados os hospedeiros intermediários”, indicou. Por isso, continua a procura do reservatório do vírus nos morcegos e noutros animais. 

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