Recentrar o SNS: uma questão de ideologia ou de regime?

O apoio de todos à assistência na doença não é uma questão de ideologia. Ao nível pessoal, é uma questão ética e moral. Ao nível do regime democrático, é uma questão de sobrevivência.

Já não se aguenta ouvir falar no assunto covid-19.  Chega ao despertar, segue pela manhã, tarde, tardinha e noite. Aparece sob as mais variadas formas. Verbal, não-verbal, material, imaterial, na comida, na bebida, em todos os momentos e por toda a nossa existência mundana e divina. A invasão é de tal modo descarada que não precisamos de memória de espécie alguma para lembrá-lo. Preocupa todos e cada um, sem distinguir género, raça ou religião.

Nesta luta anti covid o bom senso tem prevalecido. Sem necessidade de recorrer ao apelo habitual, pelos protagonistas do costume, da “Constituição”, do “Estado de direito”, de um simples “referendo” ou banal “petição”. Toda a sociedade e seus representantes mais próximos informaram-se sobre o assunto, delinearam a estratégia e, com a antecipação que se impunha, iniciaram a luta. Rapidamente se percebeu que a celeridade e a assertividade seriam a chave do sucesso, não havendo lugar para hesitações ou atrasos provocados por reuniões infindáveis. Esta batalha, liderada por quem é, só podia estar a correr pelo melhor. As armas usadas são infalíveis: a resiliência, a solidariedade e a justiça. O Zé começou-a, enfrentou-a e será ele a terminá-la no momento certo. Nada há a temer quando um povo revela esta enorme perspicácia. Nada! A história de todos e a vida de cada um deu-lhe um sentido apurado que se descobre nas alturas de crise. Mas há vida para além da covid-19! E o depois?

O que me atormenta é a ausência de foco na reforma do sistema público que, se antes da covid-19 era urgente, passou a emergente. São guerras em que o Zé não se tem feito valer das suas armas. Anda adormecido?! Não participa quando é chamado a intervir. Não! A abstenção tem sido o movimento ganhador nos últimos sufrágios. Porque será? Não se revê ele em nenhuma das ideologias dos partidos políticos? Ou melhor… Não se revê ele em nenhum dos programas eleitorais dos partidos políticos? Não exercer o direto de voto é fragilizar os alicerces que sustentam a nossa democracia, colocando-a, mais cedo ou mais tarde, em causa. Não tenhamos ilusões!

Passados 46 anos, chegamos ao ponto em que os impostos são mais elevados que nunca. Pressuporiam a existência de serviços públicos de excelência, sem falhas na resposta ou regulação. Capazes de concretizar todas, e mais algumas, das promessas apregoadas por altura das campanhas eleitorais. Tendo em mente este inegável facto, não deve o Estado aproveitar os recursos que tem para, no mínimo, proporcionar aos cidadãos bens essenciais de modo independente? Refiro-me, por exemplo, à água, eletricidade, mobilidade e saúde. Não será esta uma condição essencial a este regime democrático?

Como podemos adquirir serviços de igual qualidade, equitativos, mais baratos, melhores e que ainda proporcionam lucro? Há aqui alguma coisa que não se percebe. Há maus gestores públicos? Quem os escolheu? Há falta de modernização? Porque não se investiu? Há maus profissionais? Mas alguns não são os mesmos que trabalham em todos os locais!

Pode uma democracia sobreviver à crescente perda de independência na garantia da prestação de cuidados de saúde por parte do Estado? Especificamente de nível hospitalar?

Note-se, os serviços de assistência à saúde ultrapassam largamente os cuidados hospitalares. Incluem-se, entre outros, os cuidados primários, os cuidados continuados e paliativos, meios complementares de diagnóstico (laboratórios de imagem e imagiologia), a emergência médica extra-hospitalar, programas de apoio aos doentes com patologia do foro psiquiátrico e de apoio geriátrico.

Na prestação de cuidados hospitalares, a crescente dependência do SNS de entidades externas é o tiro certeiro no coração do sistema. Resolverá esse caminho a deficiente sustentabilidade de todos os modelos de gestão que o Estado aplicou ao SNS? Desperdiçará o Estado todos os profissionais que formou e todos os outros valiosos recursos que tem!

Levando em consideração eventuais melhorias na resposta e atendendo à sustentabilidade, as parcerias público-privadas, ou a contratualização externa de serviços, poderão, nalguns casos, justificar-se. Contudo, cair na tentação de abdicar da independência estatal na prestação dos cuidados hospitalares é um erro que ultrapassa questões ideológicas ou partidárias. Excede, porque é um erro de regime. Trata-se de entregar a outros não só a assistência na doença aguda e no parto, mas também o acesso à formação pré e pós-graduada dos profissionais de saúde.

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Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Aveiro, 22 de Abril Adriano Miranda

Pressupondo essa perigosa inevitabilidade, será o Estado, na condição de dependente e sob pressão, capaz de regular-inspecionar tão eficazmente as entidades externas que surpreenderá?

Nesta decisão não há que temer ou ceder a tensões de qualquer espécie, pois, se este é um serviço essencial à manutenção do nosso regime, o mesmo não se passa com as entidades externas. As últimas podem competir prestando o mesmo serviço ou direcionar o foco de atuação para outros, em colaboração com o Estado ou sem ele. Enquanto o Estado tem a obrigação de o proporcionar por lhe ser vital, as entidades externas adaptam-se, sem problema algum, ao mercado.

Reforça-se, não vem mal ao mundo por coexistirem entidades prestadoras de saúde externas, em nome da liberdade de oferta e de escolha. Poderão até ser muito úteis. Desde que se mantenham confinadas ao seu território e sem depender maioritariamente do Estado, como em qualquer outra atividade comercial. Um dos erros nas políticas económicas deste país, que muito contribuiu para a crise de 2008, foi que boa parte da atividade empresarial dependia, direta ou indiretamente, do Estado. Não é assim?

Retomando a preocupação de que alguns serviços são indispensáveis ao regime, não seria de propor uma iniciativa interpartidária de salvação democrática? O nosso modelo de vida não se coaduna com uma sociedade que deixe à mercê da ganância de alguns o tratamento a alguém que está doente, como no caso do filho do John Q. ou da infeção pela covid-19. O John Q. Archibald personaliza em filme um pai americano cujo filho precisava com urgência de um transplante de coração. Desesperado por não ter condições de pagar pela cirurgia, tomou como refém toda a emergência de um hospital. No caso do John, fica exposta a desumanização de um sistema de saúde e no da covid fica demonstrado que o controle do problema depende de atendermos a todos.

Mas deixemo-nos de ilusões. O atual funcionamento do SNS é mau, caro e urge reforma. O SNS tem de ser refundado. Não pode continuar a funcionar com base numa realidade de há 40 anos. Contudo, os custos referidos como “excessivos” devem ser analisados pois os números podem ser enganadores e, como em tudo na vida, as contas têm de ser bem feitas. Também é preciso conhecer o terreno, privilegiando o desenvolvimento e a operacionalização da reforma por quem o conhece por dentro. É preciso rever a gestão hospitalar atual (que não resulta). É preciso retomar as carreiras dos profissionais de saúde. É preciso que os hospitais funcionem em rede, tendo em conta a proximidade e a complementaridade. É preciso modernizar para o tornar sustentável. É preciso arranjar outras formas de financiamento. É preciso competência, seriedade, coragem e muita criatividade. Mas é possível.

O apoio de todos à assistência na doença não é uma questão de ideologia. Ao nível pessoal, é uma questão ética e moral. Ao nível do regime democrático, é uma questão de sobrevivência.

Se continuarmos a insistir em cortar os dedos, no que respeita à liberdade lusitana alcançada há quase cinco décadas, haverá poucochinho a comemorar. Os valores conquistados em abril de 74 estão a desvanecer-se, confirmando-se o marca passo temporal da queda do Estado Novo. Cuidado!

Na eventualidade de se manter este rumo espero, ansiosamente, por uma viragem. A próxima será certamente a das flores do campo. Será multicolor, bonita, alegre e delicada. Tal e qual como o Zé.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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